COP30: agro disputará ‘narrativa’ sobre crise climática em Agrizone da Embrapa

Patrocinado por gigantes do agro, espaço a 2 km do pavilhão oficial da conferência da ONU vai servir como local de negócios e até como sede temporária do Ministério da Agricultura; organizações da sociedade civil temem conflito de interesses
Por Hélen Freitas | Edição Carlos Juliano Barros

QUANDO parte do agronegócio brasileiro demonstrou resistência em participar da COP30, a conferência do clima da ONU marcada para novembro em Belém (PA), a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), vinculada ao governo federal, ofereceu uma solução: criar a Agrizone, um espaço para o setor chamar de seu, custeado por patrocínios milionários de grandes empresas e entidades de classe.

Durante os 11 dias da COP, a Agrizone ficará instalada a menos de dois quilômetros do pavilhão oficial da cúpula da ONU. Além de funcionar como feira de exposições, vai promover debates sobre questões climáticas, abrigar salas de negócios e até sediar provisoriamente o Ministério da Agricultura, de onde o titular da pasta Carlos Fávaro deverá despachar.

“O setor agropecuário estava muito resistente, sem saber se a COP seria uma oportunidade ou um evento que poderia trazer críticas ao setor”, explica Ana Euler, diretora-executiva de inovação e negócios da Embrapa. Segundo dados do Seeg (Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa), plataforma do Observatório do Clima, o agro é o principal responsável pelo desmatamento e pela emissão desses gases no país. 

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A criação da Agrizone atende a uma estratégia explícita do setor de disputar a narrativa — e a culpa — sobre a crise climática. “Nesse momento, a gente precisa sair na frente falando, porque senão a conversa que vem de lá para cá, junto com órgãos governamentais, vão tomar conta e dominar o discurso da COP”, afirmou o senador Zequinha Marinho (PL-PA) em evento da CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil), realizado em 24 de setembro. 

A CNA, por sinal, é patrocinadora “master” do espaço, com uma cota de R$ 2,5 milhões. Já Nestlé e Bayer aparecem entre as apoiadoras do nível “diamante”, desembolsando R$ 1 milhão cada. Os aportes vão financiar desde a montagem de eventos próprios até a reserva de salas para reuniões exclusivas. 

Em artigo recente publicado na Folha de S. Paulo, a CNA definiu a Agrizone como uma vitrine para o setor rural brasileiro vender a imagem de “potência agroambiental”. A confederação defende o conceito de “agricultura tropical” — um sistema de plantio que inclui práticas como integração lavoura-pecuária-floresta — como solução climática.

Queimada na Gleba Abelhas, no município de Canutama (AM), registrada em sobrevoo realizado em 2 de agosto de 2023, durante monitoramento de desmatamento e fogo do Greenpeace Brasil. © Marizilda Cruppe / Greenpeace
Dados do Seeg (Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa) apontam o agro como principal responsável pelo desmatamento e pela emissão desses gases no país (Foto: Marizilda Cruppe/Greenpeace)

Além de patrocinar a Agrizone, a CNA manterá estande próprio dentro do espaço oficial da COP30 e organizará visitas a fazendas na Amazônia para apresentar sistemas que considera sustentáveis a diplomatas, jornalistas e parlamentares.

Para críticos, a narrativa é enganosa. Ao mesmo tempo que promove tecnologias “verdes”, essas empresas e entidades estariam ligadas à expansão do desmatamento, ao uso intensivo de agrotóxicos e à emissão de metano pela pecuária. “Muitas das que se apresentam como parte da solução são as mesmas que alimentam os problemas estruturais”, diz Marília Albiero, da ACT Promoção da Saúde.

Há anos, por exemplo, a CNA pressiona por flexibilização da legislação ambiental. A entidade também questiona as propostas para o setor agropecuário contidas no Plano Clima, documento do governo federal com metas para redução do desmatamento e da emissão de gases de efeito estufa. 

Para Claudio Angelo, coordenador de Política Internacional do Observatório do Clima a caminho de sua 15ª COP, é legítimo que o agro participe da conferência, mas há risco de captura do debate. 

“O que não pode é a Agrizone virar uma plataforma para o setor dizer que não desmata ou que só precisa de dinheiro para adaptação, porque [produtores rurais] estão sendo prejudicados pelo aquecimento global que não causam. Isso não é verdade: o agro contribui para o aquecimento global”, avalia.

Agrizone ganhou fôlego depois de ‘COP do Agro’ naufragar

A Agrizone foi idealizada durante a COP29, realizada no Azerbaijão, no ano passado. A divulgação, no entanto, ganhou fôlego após a suspensão da chamada “COP do Agro”, que seria realizada em Marabá (PA), a 500 quilômetros de Belém, paralelamente à conferência da ONU. Concebido como contraponto a uma suposta perseguição sofrida pelo agro, o evento acabou cancelado por pressão do governo do estado. 

Tradicionalmente, são os próprios representantes do agro e de outros segmentos produtivos os responsáveis pela organização de eventos fora das áreas oficiais da cúpula da ONU — a blue zone, voltada a negociações entre representantes dos países, e a green zone, dedicada à sociedade civil e à iniciativa privada. Em Belém, será a vez de uma instituição pública, a Embrapa, liderar um espaço para o setor privado, a Agrizone.

Imagem aérea de setembro de 2022 mostra confinamento de gado na região de Matupá, norte de Mato Grosso. Investigação mostra que fazendas regularizadas são usadas para escoar bois "ilegais" para JBS (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)
“O que não pode é a Agrizone virar uma plataforma para o setor dizer que não desmata ou que só precisa de dinheiro para adaptação”, diz Claudio Angelo, do Observatório do Clima (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

Para Anna Cárcamo, especialista em política climática do Greenpeace, espaços como a Agrizone tendem a influenciar indiretamente as negociações: “Esses espaços não definem, por si só, os resultados da COP, mas é inegável o peso do lobby de grandes setores econômicos”, diz. Diante desse risco de influência, ela defende que a ONU e a organização da COP criem regras mais claras para evitar conflito de interesse e limitar interferências indevidas de quem tem interesse comercial no resultado das negociações.

Em nota, o Ministério da Agricultura nega conflito de interesses, e diz ver com “naturalidade e responsabilidade” a realização de iniciativas como a Agrizone pela Embrapa. A pasta ressalta que a legislação brasileira permite que a Embrapa estabeleça parcerias com instituições privadas e receba apoio financeiro para projetos.

“Esse modelo de cooperação é comum no campo da ciência, tecnologia e inovação, pois amplia o alcance de pesquisas e ações de interesse público sem comprometer a missão institucional da Embrapa”, diz o posicionamento. “Pelo contrário, fortalece sua capacidade de transferir conhecimento e aproximar a sociedade e o setor produtivo das soluções tecnológicas que promovem a sustentabilidade e a competitividade da agropecuária brasileira”, acrescenta a nota. Lei a íntegra da resposta aqui.

O Ministério do Meio Ambiente preferiu não comentar, alegando tratar-se de “evento privado”. A CNA e a presidência da COP não responderam aos pedidos de entrevista.

Acordos entre Embrapa e empresas privadas seguem regras públicas, diz diretora

A aproximação da Embrapa com o setor privado não começou na COP30. A estatal e a Nestlé, por exemplo, mantêm um protocolo para a pecuária de leite de baixo carbono, que busca reduzir emissões e criar um sistema público de monitoramento. A multinacional já investiu cerca de R$ 2 milhões no projeto que acaba em 2026, segundo dados divulgados pela Embrapa.

A Bayer financia, com outras seis empresas, o programa Soja Baixo Carbono, coordenado pela Embrapa Soja, com investimento de R$ 14,7 milhões. Mantém ainda outras três parcerias sobre pegada de carbono de lavouras e manejo de plantas daninhas, somando quase R$ 12 milhões.

Questionada sobre conflitos de interesse, Euler argumenta que os acordos seguem regras públicas. “Não é qualquer um que patrocina a Embrapa ou a Agrizone. Os interessados têm que comprovar que cumprem os critérios que estão no nosso edital de patrocínio”. No caso do evento do agro, as empresas têm de comprovar que cumprem critérios alinhados à Convenção do Clima e estão comprometidas com a descarbonização, segundo a diretora-executiva da instituição.

Produtor autuado por trabalho escravo foi excluído de programa de certificação da Nestlé quase dois anos depois do flagrante (Foto: Divulgação/Nestlé)
Embrapa e Nestlé mantêm um protocolo para a pecuária de leite de “baixo carbono”, com investimento de R$ 2 milhões feito pela multinacional (Foto: Divulgação/Nestlé)

“O interesse das empresas hoje é poder mostrar para o mercado, com um aval científico, qual é a média das suas emissões e como ela justifica o seu plano de descarbonização. A Embrapa é uma empresa pública, tem reputação, e o que eles estão fazendo é nos apoiando em projetos de pesquisa que quem faz são os nossos pesquisadores”, explica.

Euler nega que as parcerias sirvam para estratégias de marketing. “A gente não está publicando relatório, a gente se reporta com base científica, publicando em revistas científicas A1 de alta qualificação.

Apesar das justificativas, a dependência de capital privado já motivou alertas. Em 2023, o Tribunal de Contas da União apontou falhas de gestão e transparência em projetos financiados pelo setor produtivo. De 2018 a 2023, a Embrapa recebeu R$ 145 milhões desse tipo de parceria, como revelou a Repórter Brasil.

Fontes ouvidas na época temiam que a Embrapa deixasse em segundo plano a segurança alimentar da população, uma das missões da instituição, e priorizasse os interesses particulares de corporações.

A percepção de que a Embrapa se alinha cada vez mais ao discurso do agro alimenta críticas. Reportagem do Intercept Brasil mostrou que um centro de pesquisa ligado à estatal defende a adoção do GWP*, métrica de mensuração do impacto do metano rejeitada pelo IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) da ONU.

O GWP* é descrito por especialistas como um “truque contábil”: permite reduzir a importância das emissões do metano e declarar metas de neutralidade de carbono sem cortar de fato as emissões ou lidar com problemas estruturais, como o desmatamento para abertura de pasto. Grandes indústrias de carne, como JBS e Burger King, financiam centros de pesquisa que promovem a métrica.

Euler descarta a ideia de que a Embrapa adote parâmetros contrários ao IPCC. “O que a gente diz é que o debate científico é extremamente relevante, mas a Embrapa apoia os parâmetros do IPCC”, finaliza.

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