DE MOJU (PA) – Uma subsidiária da multinacional norte-americana Dow Chemical adquiriu carvão vegetal de uma carvoaria abastecida pela Fazenda Citag, em Moju (PA), onde 17 pessoas foram resgatadas do trabalho escravo em 2023. A Palmyra do Brasil, unidade no Pará da companhia de produtos químicos, recebeu dezenas de carregamentos de carvão da Carvalho Carbonização entre junho e setembro de 2025, de acordo com dados de guias florestais acessados pela Repórter Brasil.
A Carvalho Carbonização fabrica o produto a partir da queima de lenha e resíduos florestais adquiridos de fornecedores na região, como a Fazenda Citag. Os resgatados, submetidos a condições degradantes segundo a fiscalização do MTE (Ministério do Trabalho e Emprego), trabalhavam justamente na extração de madeira dentro da propriedade.
A carvoaria chegou a ter um pátio de operação dentro da Fazenda Citag, de acordo com guias florestais de outubro e novembro de 2023 e um documento de licença para ampliação da produção emitido em dezembro daquele ano.
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Na mesma operação de fiscalização do MTE que flagrou o uso de mão de obra escrava na fazenda, outras 16 pessoas foram identificadas pelo órgão em condições análogas à escravidão na derrubada de mata nativa em uma propriedade vizinha, a Fazenda Sipasa. A propriedade pertence a Sipasa Seringa Industrial do Pará S/A.
A Carvalho Carbonização também possuía um contrato para adquirir madeira oriunda do desmatamento nesta propriedade, segundo uma nota técnica da Semas-PA (Secretaria do Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará) acessada pela reportagem.
Diferentes propriedades na região registradas em nome de Wilson Fabricio Campos de Sá, autuado pelo flagrante na Fazenda Citag, e de Márcio Roberto Pinto Lisboa Pinheiro, um dos sócios da companhia dona da Fazenda Sipasa, ou de empresas nas quais os empresários figuram como sócios respondem por quase todo o fornecimento de lenha para a Carvalho Carbonização nos últimos três anos, segundo dados de guias florestais da carvoaria obtidos pela reportagem.
Campos de Sá, por exemplo, forneceu madeira à carvoaria a partir de outra área, a Fazenda Seringal Maísa. Já Pinheiro, um dos sócios da Sipasa Seringa Industrial do Pará S/A, é o responsável pela exploração florestal da Fazenda Água Clara, que abasteceu a carvoaria em 2024. Além disso, ele também é sócio de outra empresa na região, dona da Fazenda Magesa, que vendeu toras à Carvalho Carbonização em 2025.
O contratante dos trabalhadores da Fazenda Citag e a Sipasa Seringa Industrial do Pará S/A foram inseridos em abril de 2025 na Lista Suja do trabalho escravo, cadastro federal de empregadores flagrados explorando mão de obra análoga à escravidão. Diversas empresas se comprometem a restringir relações comerciais com os nomes incluídos na lista.
Após a inclusão no cadastro, não há registro de novas compras da Carvalho Carbonização diretamente dos empregadores autuados. A empresa, no entanto, continuou comprando matéria-prima da Fazenda Magesa, propriedade ligada a Pinheiro. Ela faz fronteira com a Fazenda Sipasa, onde ocorreu um dos flagrantes de trabalho escravo.
As propriedades fornecedoras são limítrofes entre si ou estão localizadas na mesma região (veja o mapa).

Questionado pela reportagem, Pinheiro negou haver relação operacional entre as propriedades Magesa e Sipasa. Ele ressaltou que as condições constatadas pelo MTE, que culminaram no flagrante na Sipasa, ocorreram em um acampamento de um prestador de serviços vizinho, mas reconheceu ter responsabilidade solidária como tomador de serviço e disse ter adotado medidas corretivas e preventivas após a fiscalização.
“Passamos a inspecionar diretamente as condições de alojamento, alimentação, segurança e jornada de trabalho dos prestadores para evitar qualquer repetição de irregularidades”, declarou Pinheiro. A resposta completa pode ser lida aqui.
Campos de Sá e a empresa Carvalho Carbonização também foram procurados, mas não responderam até a publicação da reportagem. O espaço está disponível para manifestações futuras.
Cadeia de fornecimento para os EUA
A planta industrial da Palmyra, em Breu Branco (PA), utiliza carvão vegetal para fabricar silício metálico — insumo usado pela indústria química na produção de silicones, resinas, selantes e óleos. Registros alfandegários consultados pela reportagem mostram que a Palmyra exporta silício à Dow dos Estados Unidos desde 2021.
Em seu site, a Dow afirma ter compromissos públicos contra trabalho forçado. A empresa estabelece que fornecedores — diretos ou indiretos — devem respeitar padrões de direitos humanos, e que contratos podem ser encerrados em caso de violações.
A Repórter Brasil procurou a Dow, a Palmyra do Brasil, mas nenhuma das empresas respondeu até esta publicação. O espaço está aberto para futuras manifestações.
‘Quase nunca trabalhei de carteira assinada’, disse resgatado
Na Fazenda Citag, os trabalhadores foram encontrados sem registro em carteira e alojados em casas precárias de madeira, segundo a fiscalização. Eles tomavam banho e lavavam roupas em um igarapé, que também servia como fonte de água para consumo, sem comprovação de potabilidade. Os sanitários estavam inoperantes e não havia local adequado para refeições, conforme o relatório do MTE.
Na Fazenda Sipasa, os trabalhadores foram encontrados em condições semelhantes, de acordo com a fiscalização. Eles dormiam em redes nas varandas para escapar do calor dos quartos, e os banheiros também estavam em condições inadequadas. Não havia equipamentos de proteção individual, como capacetes e luvas. Conversamos com um dos resgatados na Fazenda Sipasa sob anonimato. Ele contou que o salário combinado à época era R$ 3.000, sem carteira assinada. “Trabalhei de carteira assinada uma ou duas vezes na vida”, afirmou o operador de motosserra, com meio século de experiência. Também contou que o alojamento era antigo e “destruído”, com banheiro sem água, o que o obrigava a usar o mato para suas necessidades.
A reportagem também ouviu um trabalhador resgatado na Fazenda Citag, que pediu anonimato por temer retaliações. Segundo ele, as casas eram “velhas” e “mal feitas”. Sem transporte, ele afirma que precisava caminhar até dois quilômetros com a motosserra nas costas para chegar à frente de trabalho.

Alex de Souza, superintendente do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) no Pará, afirma que municípios como Moju e Tailândia foram historicamente dependentes da indústria madeireira. Cerca de 130 km separam as cidades. Em julho, o Ibama fez uma grande operação de fiscalização na região sobre “esquentamento” de madeira, esquema que tenta dar aparência de legal para produtos de origem ilegal com documentação fraudulenta. Na operação, agentes do órgão ambiental apreenderam mais de mil m³ de madeira ilegal, embargaram mil hectares de floresta nativa desmatada e outros 3,2 mil hectares de áreas danificados por extração sem licença.
Ao comentar a atividade madeireira na região, Souza diz que Tailândia “ainda trabalha muito com madeira ilegal”, mas avalia que a produção tem caido nos últimos anos. Já a produção de carvão “geralmente é feita com resíduo de desmatamento legal”.
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