EX-MINISTRO DA AGRICULTURA do primeiro governo Lula e figura influente no agro, Roberto Rodrigues vai assumir um posto chave na COP30, com a missão de disputar a narrativa sobre a culpa do setor pelas mudanças climáticas no Brasil.
Durante a cúpula ambiental da ONU, programada para novembro na capital paraense, Rodrigues será o “enviado especial da Agricultura”. Alçado ao cargo pelo presidente da COP André Corrêa do Lago, com a benção das principais entidades representativas do segmento, ele ficará responsável por encaminhar à coordenação do evento as principais demandas dos produtores rurais.
Rodrigues não é novato na disputa por narrativas. Em 2003, foi escolhido por Lula para chefiar a pasta da agricultura, num gesto de aproximação com um agronegócio em ascensão. Deixou o cargo em 2006, após atritos com o presidente e com outras áreas do governo, sobre a distribuição de recursos.
Desde então, converteu seu capital político em influência institucional, mantendo papel ativo na defesa de interesses do setor. Rodrigues gosta de apresentar o Brasil como líder do “agro tropical”, exportador de tecnologia para outros países de clima semelhante, e costuma repetir que o aumento da produção agrícola nacional foi fruto de pesquisa científica aliada a políticas públicas.
Na COP30, pretende levar esse discurso para o centro do debate, contrapondo-se a pressões internacionais por cortes nas emissões do setor. Dados compilados por organizações ambientalistas mostram o agro como o principal vetor de pressão sobre o clima no Brasil, principalmente por causa do desmatamento para abertura de pastagens e lavouras.
Segundo o Seeg, do Observatório do Clima, as atividades agropecuárias responderam por 74% das emissões de gases de efeito estufa no Brasil em 2023. A expansão da agricultura e da pecuária foram responsáveis pela perda de 97% de vegetação nativa nos últimos seis anos, de acordo com o Relatório Anual de Desmatamento do MapBiomas.

A tarefa mais imediata de Rodrigues é organizar, até outubro, um documento único do agro a ser entregue à presidência da conferência, reunindo contribuições de entidades como CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil) e Abag (Associação Brasileira do Agronegócio).
O texto final será avalizado pelo IPA (Instituto Pensar Agro), think tank que assessora a bancada ruralista e é custeado por 58 organizações do setor agrícola e industrial. Entre os financiadores estão a Croplife Brasil, representante dos fabricantes de agrotóxicos, e a Abia (Associação Brasileira da Indústria de Alimentos).
O documento deve ressaltar a importância da “agricultura tropical sustentável” — liderada pelo Brasil — e cobrar financiamento e flexibilização de regras comerciais por parte dos países ricos. Rodrigues promete incluir um capítulo sobre gargalos , como desmatamento ilegal, incêndios criminosos e invasão de terras públicas e privadas.
Em seus discursos, Rodrigues tenta dissociar as atividades predatórias dos produtores rurais. Em entrevista à Repórter Brasil, afirma que essas práticas são usadas por “concorrentes” em disputas comerciais. “São crimes de aventureiros, de bandidos que têm que ser punidos, idealmente, pelos governos federal, estaduais etc., para que não haja mistura da agricultura sustentável tropical aqui gerada com o banditismo que existe, infelizmente, pelo não cumprimento de várias leis”, classifica.
Disputas de narrativas sobre o clima
A divergência de entendimento sobre a contribuição do para as mudanças climáticas fica explícita na elaboração do Plano Clima, programa do governo federal com as ações necessárias para reduzir a liberação dos gases causadores do aquecimento global.

No documento com o plano setorial de mitigação da agricultura e pecuária, o governo atribuiu 68% das emissões nacionais de 2022 ao setor e propôs uma redução para 54% até 2035.
Entidades representativas do agro reagiram com campanhas na imprensa e nas redes sociais, além de pressão política em gabinetes de ministérios e do Senado. Rodrigues classifica as metas como “absurdas” e “inaceitáveis”. Rumores davam conta de que o ex-ministro de Lula poderia deixar o cargo de enviado especial na COP30, caso o texto não fosse alterado — o que ele nega.
“Isso foi um exagero. Eu não disse isso. Eu disse que não ficaria bem para o enviado especial, que é do governo, estar em desacordo com o Plano Clima, que é do governo”, pondera.
O Ministério do Meio Ambiente é categórico ao dizer que as atividades ligadas ao uso da terra, à agricultura e às florestas precisam deixar de ser as maiores poluidoras nacionais e passar a ser, no médio e longo prazo, as maiores responsáveis pela redução dos gases de efeito estufa. “Parece ser essa realidade que o setor do agronegócio insiste em negar com suas críticas”, afirmou o ministério em nota enviada à Repórter Brasil em setembro.
Rodrigues afirma não querer comentar a visão da pasta comandada por Marina Silva. “Não vou entrar num debate dessa natureza. Não aceito a posição do Ministério do Meio Ambiente e vamos trabalhar na direção do que é mais justo e correto”, argumenta.
Limpeza de imagem do agronegócio
A atuação de Rodrigues também passa pela disputa de narrativas em outros campos. Ele integra o conselho da associação De Olho no Material Escolar, financiada por empresas do agro para influenciar a forma como o setor é retratado em livros didáticos. O grupo nega, por exemplo, que o Brasil seja o maior consumidor de agrotóxicos do mundo, que a pecuária seja o principal vetor do desmatamento na Amazônia ou que haja trabalho escravo na cana-de-açúcar — apesar de dados oficiais indicarem o contrário.
Na COP, Rodrigues planeja dois eventos na área de negociações, a chamada “blue zone”, incluindo um painel sobre pecuária de corte e carbono. “Há uma falácia de que a pecuária emite metano no arroto do boi. É verdade, mas, do berço ao túmulo, a pastagem sequestra mais carbono do que o gado emite”, defendeu, citando estudo da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária).

A estatal tem sido criticada por aproximar-se do discurso do agro. Uma reportagem do Intercept Brasil mostra que centro de pesquisa ligado à Embrapa defende o uso do GWP*, métrica para medir o impacto do metano na atmosfera rejeitada pelo IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas), da ONU.
Especialistas classificam o GWP* como um “truque contábil” que permite ao setor subestimar suas emissões e até se declarar neutro em carbono sem reduzir de fato seu impacto climático. A indústria da carne, por meio de companhias como JBS e Burger King, têm financiado centros de pesquisa internacionais para promover o uso dessa nova métrica do metano, como revelou a Repórter Brasil.
Críticos afirmam que, além de desconsiderar os efeitos do desmatamento associado à expansão da pecuária, o GWP* pode “minar a ciência climática” e confundir consumidores e formuladores de políticas.
A força de Rodrigues está justamente em transitar entre os campos técnico e político. Como ministro, foi peça-chave na institucionalização do seguro rural e na aprovação dos transgênicos. Agora, o ex-ministro pretende usar seu prestígio para reforçar a narrativa de que o agro brasileiro é produtivo e sustentável, e para reduzir o peso de indicadores científicos que ligam o setor ao desmatamento e às emissões.
Na COP30, seu desafio é apresentar essa visão como consenso do setor e convencer negociadores internacionais de que o Brasil pode liderar uma agricultura tropical de baixo carbono — mesmo que os dados indiquem um cenário bem mais complexo.
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