Human Rights Watch: pastagens ilegais no Pará abasteceram fornecedores da JBS

Relatório da organização aponta que fornecedores diretos da JBS adquiriram gado criado ilegalmente dentro da Terra Indígena Cachoeira Seca e do projeto Terra Nossa, voltado à agricultura familiar e extrativismo sustentável, ambos no Pará; Human Rights Watch cobra monitoramento de fornecedores e políticas públicas de rastreamento de gado
Por Poliana Dallabrida | Edição André Campos
 15/10/2025

UM RELATÓRIO divulgado nesta quarta-feira (15) pela organização Human Rights Watch revela que fazendas ilegais dentro de territórios de pequenos agricultores e povos indígenas no Pará, estado que sediará a COP30, venderam gado para fornecedores diretos da JBS.

No estudo “Gado sujo: a JBS e a exposição da UE a violações dos direitos humanos e ao desmatamento ilegal no Pará, Brasil”, a Human Rights Watch documentou a expansão da pecuária na Terra Indígena Cachoeira Seca, do povo Arara, e no Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Terra Nossa, destinado a pequenos agricultores que praticam atividades sustentáveis. 

Segundo a organização, pecuaristas se apropriaram ilegalmente de terras e devastaram os meios de subsistência dos moradores dos dois territórios. Das fazendas ilegais dentro das duas áreas, o gado foi vendido para fornecedores diretos das unidades da JBS em Marabá (PA), Colíder (MT) e Andradina (SP).

A Human Rights Watch estabeleceu a conexão entre cinco fazendas ilegais dentro dois territórios e abatedouros da JBS por meio da análise de guias de trânsito animal emitidas pelo governo do estado do Pará entre 2019 e 2022. A sistematização desses dados contou com a colaboração da Repórter Brasil

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A carne bovina e couro produzidos com gado proveniente de fazendas ilegais da região podem ter sido, inclusive, exportados pela JBS para a União Europeia, apontou a organização. “A JBS deve assumir a sua responsabilidade, mesmo que não intencional, de sua contribuição para o desmatamento ilegal e violações de direitos humanos”, disse Luciana Téllez Chávez, pesquisadora sênior de meio ambiente da Human Rights Watch, durante a coletiva de imprensa para o lançamento do relatório. 

No relatório, a Human Rights Watch não detalhou o nome das fazendas que venderam e receberam o gado criado ilegalmente dentro dos territórios. “Várias fontes informaram a Human Rights Watch sobre a identidade dos fazendeiros que atuam nas áreas onde conduzimos nossa pesquisa. Para proteger nossas fontes contra retaliações, as fazendas identificadas neste relatório foram anonimizadas”, disse à organização no estudo.

Em resposta à Human Rights Watch, a JBS lamentou não ter tido acesso à informações sobre as fazendas, “o que impossibilitou que a equipe de sustentabilidade da empresa realizasse uma análise adequada”. A companhia ressaltou que sua Política de Aquisição Responsável de Matéria-Prima proíbe a compra de gado de fazendas envolvidas com desmatamento, trabalho forçado, invasão de territórios indígenas ou embargadas por autoridades ambientais e que desenvolveu um sistema de monitoramento de fornecedores para verificar o cumprimento dos padrões socioambientais em cada compra de gado.

A empresa disse também que “vai além das exigências legais” e que atualmente mantém uma plataforma onde seus fornecedores diretos se registram e podem indicar a origem dos animais comprados. Uma das principais características desse sistema é a Declaração de Origem do Gado (DOG), documento emitido pelo fornecedor direto. Para gerar uma DOG, o fornecedor deve fornecer informações sobre todas as fazendas de onde os animais do lote em questão se originam. Essas informações só são validadas com a apresentação de guias de trânsito animal, que indicam a movimentação dos animais entre propriedades. A JBS afirmou que, até janeiro de 2026, só comprará de fornecedores registrados na plataforma.

A JBS também foi procurada pela Repórter Brasil para comentar o relatório, mas não respondeu até o fechamento deste texto. O espaço segue aberto para manifestações futuras.

Territórios invadidos

O PDS Terra Nossa foi criado em 2006 pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) para abrigar originalmente mil famílias de pequenos agricultores em atividades de agricultura familiar e extrativismo sustentável. A área está localizada entre Novo Progresso e Altamira, no Sul do Pará.

Quase duas décadas depois, o projeto acumula violência, ocupações ilegais e omissão estatal, segundo a Human Rights Watch. A organização aponta que apenas 298 lotes foram demarcados até 2018. O restante da área – cerca de 80% – está nas mãos de madeireiros e pecuaristas que atuam de forma ilegal. Em 2023, segundo a organização, 45% do território havia sido convertido em pasto.

A diretoria do Incra estuda, ainda, uma proposta de reduzir pela metade a área do PDS Terra Nossa. Em agosto deste ano, a Human Rights Watch enviou uma carta ao presidente do Incra, César Aldrighi, pedindo que o órgão rejeite publicamente qualquer tentativa de redução do território

Apenas os pecuaristas que transferem o animal da fazenda diretamente para o abate é que são 100% monitorados pelos frigoríficos. Produtores envolvidos em etapas anteriores da criação escapam no radar (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)
Apenas os pecuaristas que transferem o animal da fazenda diretamente para o abate é que são 100% monitorados pelos frigoríficos. Produtores envolvidos em etapas anteriores da criação escapam no radar (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

A Terra Indígena Cachoeira Seca, por sua vez, se estende por 734 mil hectares entre Altamira, Placas e Uruará, também no Sul do Pará. O território foi homologado em abril de 2016. 

A homologação deveria ser seguida pela remoção de ocupantes ilegais do território. Para a Human Rights Watch, no entanto, o processo foi o contrário. “Desde 2016, porém, as remoções não foram realizadas e, na verdade, os grileiros estabeleceram mais fazendas de gado ilegais na TI Cachoeira Seca”, diz trecho do relatório. 

A organização ressalta que o número de ocupantes ilegais é inclusive maior que os cerca de 200 indígenas Arara vivendo no território. 

Lavagem de gado

A Human Rights Watch aponta que, mesmo ilegais perante a legislação brasileira, as fazendas prosperaram com o apoio do estado do Pará, que autorizou a movimentação do gado por meio de sua agência de saúde animal, a Adepará (Agência de Defesa Agropecuária do Estado do Pará). 

Os animais criados ilegalmente dentro do PDS Terra Nossa e da TI Cachoeira Seca foram repassados para fazendeiros intermediários. Esses pecuaristas, então, venderam gado para grandes frigoríficos. Para a Human Rights Watch, essa movimentação corresponde à estratégia de “lavagem de gado”. 

Na manobra conhecida como “lavagem de gado”, “esquentamento” ou “triangulação”, pecuaristas encobrem a origem ilegal de seu rebanho registrando a passagem dos bois por uma fazenda que não tem impedimentos socioambientais para vender ao frigorífico. 

Mapear indiretos é essencial

Após o nascimento, o animal passa pelas etapas de cria, recria – fase que começa após o desmame – e engorda. Em muitos casos, essas etapas envolvem diversos pecuaristas. Mas apenas aqueles que transferem o animal da fazenda para o abate, os fornecedores direitos, é que são devidamente mapeados e monitorados pelos frigoríficos. 

Os pecuaristas que fornecem aos fornecedores direitos dos frigoríficos – também chamados de “fornecedores indiretos” – acabam fora do radar das empresas do setor, ainda incapazes de rastrear todas as propriedades onde os bois passaram antes de chegar ao abate.

Nos cinco casos mapeados pela Human Rights Watch, os pecuaristas que criam gado no Pará venderam animais para fornecedores diretos da JBS em unidades da empresa no Pará, Mato Grosso e São Paulo. “A lavagem de gado não é limitada por fronteiras estaduais e precisa de uma solução nacional”, apontou Luciana Chávez. 

“Uma medida essencial é estabelecer um mecanismo de rastreabilidade para o gado”, avaliou Chávez. “O Ministério da Agricultura e Pecuária já anunciou que irá implementar um sistema, mas com um cronograma muito longo, de oito anos. É preciso perguntar se a Amazônia conseguirá esperar até lá”, complementou.

Trabalho escravo

Na última semana, a Repórter Brasil publicou uma investigação que mostra como pecuaristas autuados por trabalho escravo em fazendas de gado fazem parte da cadeia de fornecimento dos maiores frigoríficos brasileiros. 

Entre 1995 e 2024, atividades da pecuária concentraram 26% do número de vítimas de trabalho escravo no Brasil (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)
Entre 1995 e 2024, atividades da pecuária concentraram 26% do número de vítimas de trabalho escravo no Brasil (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

As relações entre oito produtores flagrados submetendo trabalhadores a condições análogas à escravidão entre 2018 e 2023 e gigantes do setor estão detalhadas no relatório “Fora do radar – Como pecuaristas flagrados com trabalho escravo integram a rede de fornecimento dos maiores frigoríficos do país”.

Além dos pecuaristas responsabilizados por trabalho escravo, foram identificados outros dois produtores autuados por criarem gado ilegalmente dentro da Terra Indígena Krikati, no Maranhão. Entre os dez produtores mencionados no relatório, três também possuem autuações ou embargos por desmatamento ilegal.

A partir da análise de registros de trânsito animal de 2018 a 2025, foi possível identificar que o gado desses criadores foi transferido para fazendas fornecedoras de frigoríficos ou enviado diretamente ao abate em empresas como JBS, Minerva, Marfrig e Frigol, as quatro maiores do país, ou outras de atuação regional, como Masterboi, Rio Maria, Pantanal e Frigosaj.

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