Justiça Federal suspende pedidos de mineração no quilombo Kalunga, em Goiás

Decisão inclui processos para exploração de terras raras. Em agosto, Repórter Brasil revelou existência de pedidos de mineração sobrepostos ao quilombo Kalunga (GO) e a uma comunidade vizinha, no Tocantins
Por Isabel Harari | Edição Carlos Juliano Barros
 02/10/2025

A JUSTIÇA FEDERAL suspendeu os pedidos de mineração no território quilombola Kalunga, no norte de Goiás. Publicada na terça-feira (30), a decisão da Vara Cível e Criminal de Formosa (GO) obriga a ANM (Agência Nacional de Mineração) a interromper todos os processos minerários e a anular as licenças já concedidas a empresas com interesse na área. O motivo é a falta de “consulta livre prévia e informada” das comunidades locais sobre os impactos dos empreendimentos.

A mineração dentro de quilombos não é necessariamente ilegal. Porém, a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), ratificada pelo Brasil em 2004, determina que comunidades sejam devidamente comunicadas e ouvidas  a respeito de atividades econômicas em seus territórios.

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“É a esperança de que os órgãos estatais estejam atentos à aplicabilidade da Convenção 169. Isso pode influenciar outros tribunais a colocarem essa matéria como um tema importante, de relevante valor social e preservação ambiental”, afirma Andrea Gonçalves Silva, advogada da Associação Quilombo Kalunga (AQK). O Kalunga é um dos maiores territórios do tipo no Brasil.

Em nota, a ANM informou que até o momento não recebeu comunicação oficial da Vara Cível de Formosa (GO) sobre a decisão mencionada. “Quando for formalmente intimada, adotará as providências cabíveis e se manifestará nos autos, dentro dos limites legais de sua atuação institucional”, diz o posicionamento.

Decisão inclui projeto de exploração de terras raras

A nova decisão da Vara Federal de Formosa faz valer uma sentença que já havia sido tomada em 2018, em primeira instância, exigindo a consulta prévia. A medida se aplica a todos os processos minerários protocolados a partir de 2004, quando a Convenção 169 ganhou força de lei no Brasil. 

A sentença inclui processos minerários em fase inicial. É o caso de pedidos protocolados pela empresa Brasmet Exploration Participações para explorar terras raras – conjunto de minérios usados na produção de ímãs para turbinas eólicas, carros elétricos, indústria aeroespacial e bélica. 

Em 2024, a ANM  deu sinal verde para o início das pesquisas. Os quilombolas, no entanto, afirmam que não teriam sido consultados e que sequer sabiam da existência da demanda por terras raras em seu território. O caso foi revelado pela Repórter Brasil no início de agosto.

Cruzamento de dados mostra seis requerimentos minerários da empresa Brasmet sobrepostos ou a menos de 10 km dos quilombos Kalunga do Mimoso, Tocantins, e Kalunga, Goiás (Ilustração: Rodrigo Bento/Repórter Brasil)
Cruzamento de dados mostra seis requerimentos minerários da empresa Brasmet sobrepostos ou a menos de 10 km dos quilombos Kalunga do Mimoso, Tocantins, e Kalunga, Goiás (Ilustração: Rodrigo Bento/Repórter Brasil)

A autorização de pesquisa é uma medida administrativa que tem efeito sobre as comunidades, e que deve seguir o rito da Convenção 169 da OIT, explica Silva. “O ato de aprovar o requerimento de pesquisa é um ato administrativo, tem um despacho autorizando. A ANM não pode autorizar sem consultar a comunidade”, reforça a advogada da associação quilombola. 

O juiz federal substituto, Thiago Rangel Vinhas, estabeleceu um prazo de 30 dias para que a ANM faça valer a decisão. Em caso de descumprimento, a agência estará sujeita a uma multa diária a ser definida. A decisão é um cumprimento provisório da sentença de 2018. O pedido do Ministério Público Federal ainda aguarda julgamento no Tribunal Regional Federal da 1ª Região.

Terras raras são um conjunto de elementos químicos usados na alta tecnologia e considerados estratégicos para a chamada “transição energética”. O Brasil tem a segunda maior reserva no mundo, atrás apenas da China. A Agência Internacional de Energia projeta um crescimento da demanda entre 50 e 60% até 2040.

Mineração de terras taras afetam ao menos 41 áreas protegidas na Amazônia

As terras raras têm sido alvo de interesse dos Estados Unidos. A animação com o potencial do Brasil para exploração dessas substâncias chegou até a Assembleia da ONU, realizada em Nova Iorque. Após seu breve encontro com Donald Trump, Lula sinalizou que a exploração desses elementos podem estar na mesa em uma futura reunião com o presidente dos EUA.

Um levantamento da Repórter Brasil mostrou que os pedidos para explorar as terras raras afetam ao menos 41 áreas protegidas na Amazônia Legal, entre terras indígenas, territórios quilombolas e unidades de conservação ambiental. Um deles é o quilombo Kalunga do Mimoso, no Tocantins, vizinho ao Kalunga.

Comunidade do quilombo Kalunga do Mimoso, em Tocantins, em imagem de 2022. Comunidade é reconhecida como quilombola pela Fundação Palmares desde 2005, e processo de regularização do território está em andamento (Foto: Arquivo pessoal)
Comunidade do quilombo Kalunga do Mimoso, em Tocantins, em imagem de 2022. Comunidade é reconhecida como quilombola pela Fundação Palmares desde 2005, e processo de regularização do território está em andamento (Foto: Arquivo pessoal)

“Não temos conhecimento dessa pesquisa. Fiquei surpreso”, relatou Eudemir de Melo da Silva, vice-presidente da Associação Kalunga do Mimoso. O quilombo fica do outro lado do rio Tocantins, já dentro dos limites da Amazônia Legal. Nos dois territórios quilombolas, os pedidos estão no nome da Brasmet

“As terras raras são importantes para a transição energética, mas essa transição energética é justa para quem? Os mais impactados são os quilombolas que vão ter suas terras exploradas”, afirma Vercilene Dias, coordenadora da assessoria jurídica da Conaq (Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas) e assessora da Associação Quilombo Kalunga.

O que diz a Brasmet?

Os requerimentos da Brasmet para exploração de terras raras foram protocolados em março de 2024. Em abril, ao analisar os processos, a ANM reconheceu que os polígonos estavam sobrepostos às comunidades quilombolas Kalunga e Kalunga do Mimoso. 

Em agosto, a ANM foi questionada pela reportagem sobre a necessidade de consulta às comunidades afetadas na etapa de pesquisa, mas não respondeu.

A Repórter Brasil entrou em contato com a Brasmet, empresa ligada ao fundo de investimentos Ropa, com sede em Gibraltar. Dedicado a investimentos em mineração, o fundo afirma em seu site “promover relações positivas com as comunidades locais” e assegurar compromissos com elas. 

O representante legal das duas empresas no Brasil, Alexandre Galvão Olímpio, confirmou à reportagem a sobreposição dos requerimentos minerários com o território quilombola, e disse que até o momento a empresa realizou “levantamentos geológicos de superfície, sem qualquer intervenção física no meio ambiente”. 

“Não há obrigação legal de consulta prévia às comunidades locais para a realização deste tipo de atividade, que é considerada de baixíssimo impacto, não ensejando qualquer modificação física da área ou interferência nos modos de vida locais”, declarou Olímpio, por email (veja o posicionamento na íntegra). O fundo foi procurado diretamente pela Repórter Brasil, mas não retornou até o momento.

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Vista da Comunidade quilombola Kalunga do Engenho II (Foto: Joédson Alves/Agência Brasil)
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