AS EMISSÕES de gases de efeito estufa das 124 maiores marcas de moda do mundo somaram em 2023 cerca de 1,1 bilhão de toneladas de gás carbônico (CO₂), um volume superior às emissões anuais combinadas de Vietnã e Bangladesh. Apesar das metas climáticas anunciadas publicamente, menos de um terço (29%) dessas empresas conseguiram demonstrar uma redução real em suas emissões. Os dados são do novo relatório “What Fuels Fashion?”, do Fashion Revolution, observatório dos impactos socioambientais gerados pela indústria da moda.
O principal vilão, aponta o estudo, não está nas vitrines ou nas passarelas, mas escondido na etapa da produção: a enorme demanda por energia térmica. Processos como tingimento, lavagem e secagem de tecidos dependem da queima de combustíveis fósseis, principalmente carvão, para gerar o calor necessário. Essa dependência não só representa a maior fatia das emissões do setor, como também expõe trabalhadores a um ambiente potencialmente tóxico e a condições de calor insalubres.

Antes de chegar ao guarda-roupa do consumidor, cada peça de roupa passa por uma jornada altamente poluente. Após a produção da matéria-prima, os tecidos entram nos chamados “processos úmidos”: são fervidos em grandes tanques para o tingimento, lavados com enormes volumes de água quente e submetidos a vapor para amaciamento e acabamento anti-rugas.
Cada uma dessas etapas exige quantidades massivas de calor. Na maioria das vezes, a energia é gerada pela queima de carvão e gás em caldeiras industriais, liberando gases de efeito estufa e poluentes tóxicos na atmosfera. Conforme detalha o relatório, de 70 a 80% de toda a energia consumida para fazer um tecido é térmica, majoritariamente gerada por combustíveis fósseis.
Já existem tecnologias para substituir combustíveis fósseis
A moda é uma indústria de manufatura leve, com processos que raramente excedem 200°C, muito abaixo dos mais de 1000°C de setores como o siderúrgico.
Tecnologias como bombas de calor e caldeiras elétricas poderiam substituir os combustíveis fósseis. Porém, apenas 6% das marcas avaliadas no relatório do Fashion Revolution divulgam medidas de eletrificação de sua cadeia produtiva.
Pouco mais da metade das marcas (53%) revela suas fábricas de confecção, e apenas 35% abrem informações sobre as instalações de processamento, onde o consumo de energia é mais crítico. “Sem a visibilidade dos fornecedores, uma descarbonização crível é impossível”, afirma o relatório.
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O falso conforto da matriz energética brasileira
Coordenadora de pesquisa do Fashion Revolution Brasil e integrante da equipe responsável pelo relatório, Isabella Luglio afirma que a falta de transparência também é uma barreira no país.
“Dados spoiler da edição [do Índice de Transparência da Moda Brasil, outra publicação da Fashion Revolution] focada em clima e rastreabilidade, que ainda será lançado, mostram que 42% das marcas divulgam seus fornecedores diretos, 43% suas instalações de processamento e apenas 23% informam a origem de pelo menos um tipo de matéria-prima. Isso significa que mais da metade das empresas continua opaca em etapas críticas como tingimento e acabamento”, explica Luglio.
Segundo a pesquisadora, a matriz elétrica brasileira, considerada mais limpa que a de polos asiáticos, pode mascarar o problema. “Isso tira parte da pressão sobre o setor e pode gerar uma falsa sensação de conforto”, diz Isabella.

“No setor têxtil brasileiro, cerca de 28% da energia consumida ainda vem de gás natural e biomassa. O gás é um combustível fóssil e a biomassa, embora renovável, traz impactos sociais e ambientais significativos, sobretudo no Brasil. Essas fontes podem ter um papel transitório, mas não são soluções definitivas”, complementa.
Marcas não divulgam dados sobre níveis de calor e umidade em suas fábricas
O custo humano da crise climática é outro ponto cego da indústria. O relatório revela um dado alarmante: nenhuma das marcas monitoram ou divulgam dados sobre os níveis de calor e umidade (WBGT) em suas fábricas.
Isabella Luglio confirma a gravidade do problema no Brasil. “O estresse térmico já é reconhecido como risco ocupacional, mas ainda é pouco monitorado no setor de vestuário no Brasil. Ouvimos relatos de trabalhadores desmaiando ou passando mal devido ao calor”, explica.

Ela critica as medições pontuais feitas em auditorias, que “podem mascarar a realidade”, e defende o monitoramento contínuo, com dados transparentes, usando tecnologias simples como termômetros digitais conectados.
A indústria tem a tecnologia e os recursos para mudar, mas falha em governança e responsabilidade. A falta de investimento em calor limpo e a contínua terceirização dos custos para os elos mais frágeis da cadeia de produção indicam que, sem pressão regulatória e responsabilização, o futuro da moda continuará sendo alimentado por combustíveis fósseis e custará a saúde do planeta e de seus trabalhadores.