A EXPLORAÇÃO de minerais críticos para a indústria de tecnologia pode afetar ao menos 45 povos indígenas isolados na Amazônia Legal.
Levantamento exclusivo da Repórter Brasil identificou 1.827 pedidos de mineração de cobre, lítio, terras raras e outros 13 elementos — usados em produtos como chips, torres eólicas e carros elétricos — a menos de 40 km de grupos indígenas isolados.
A essa distância, as atividades minerárias representam um risco para a integridade desses povos, afirma o OPI (Observatório dos Povos Indígenas Isolados), organização de defesa dos direitos dessas comunidades.
“O isolamento é uma condição de sobrevivência, em razão da mineração, da abertura de estradas e do agronegócio. A pressão está apertando muito”, alerta o antropólogo Miguel Aparício, que trabalha com isolados há 30 anos e preside o OPI.
Ao todo foram identificados 7.718 requerimentos ativos para 16 minerais em toda a Amazônia, protocolados entre 1953 e setembro de 2025. Desse total, 1.827 (24%) estão muito próximos de áreas com indígenas isolados — 1.226 processos referem-se à mesma substância: o estanho.

Os dados mostram também uma disparada recente nos pedidos de exploração, já que 3.392 processos (ou 44% do total) foram apresentados a partir de 2020.
O levantamento aponta ainda que a maior parte dos pedidos (4.539, ou 59% do total) está em fase inicial de pesquisa, enquanto outros 2.369 processos (31%) encontram-se na etapa de concessão de lavra, em que a extração já pode ser iniciada. O restante (810 solicitações) estão em “disponibilidade”, quando uma área fica livre para que novos interessados possam requerer o direito de pesquisa ou lavra.
Segundo o levantamento da Repórter Brasil, os 1.827 pedidos minerários que afetam povos isolados foram feitos por 567 empresas, cooperativas ou pessoas físicas. Entre elas estão a Anglo American Níquel Ltda, a Vale e a Bemisa, além de cooperativas de mineradores e pessoas físicas (veja mais detalhes ao longo do texto).
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A análise da Repórter Brasil, realizada com apoio da Rainforest Investigation Network, do Pulitzer Center, cruzou informações de localização dos povos isolados, fornecidas pelo OPI, com os pedidos de exploração de 16 minerais críticos na Amazônia, extraídos da base da ANM (Agência Nacional de Mineração). A lista inclui cobalto, cobre, estanho (cassiterita), grafita, lítio, nióbio, níquel, platina, silício, tálio, tântalo, terras raras, titânio, tungstênio, urânio e vanádio.
As descobertas fazem parte de um projeto de investigação sobre a exploração de minerais críticos na Amazônia para a indústria de tecnologia. Novas reportagens serão publicadas nos próximos meses.

Mais de 80% de isolados estão ‘cercados’ por projetos de minerais críticos
O Brasil tem a maior concentração de indígenas isolados do mundo, com 115 registros reconhecidos oficialmente, todos na Amazônia Legal. Um total de 29 grupos já foi confirmado, enquanto outros 26 com fortes evidências estão em estudo. Há ainda informações sobre outros 60 povos, mas sem estudos de qualificação.
O levantamento da Repórter Brasil considerou apenas os 55 registros já confirmados e em estudo. Desses, 45 (81%) estão a menos de 40 km de áreas cobiçadas por projetos de mineração essenciais à indústria tech.
Entre os povos afetados estão os Moxihatëtëa (Serra da Estrutura), isolados na Terra Indígena Yanomami. Devastada pelo garimpo ilegal de ouro, a área está cercada por 228 processos minerários de estanho, nióbio, tântalo e outros elementos.
A TI Yanomami é a segunda mais impactada, atrás apenas da Floresta Nacional do Amanã, na bacia do Tapajós, no Pará. Em terceiro lugar está a TI Uru-Eu-Wau-Wau, em Rondônia, onde vivem cinco povos isolados. Esta área é ameaçada pelo garimpo ilegal de estanho e está cercada por 224 processos minerários fundamentais à industria de tecnologia.
Ao todo 30 unidades de conservação e terras indígenas com registros de povos isolados são afetadas. Algumas delas já figuram entre as mais desmatadas na Amazônia, caso das terras indígenas Ituna Itatá e Munduruku, no Pará.
“Os mesmos territórios sujeitos ao desmatamento e ao garimpo ilegal também estão pressionados por essa corrida global pelos minerais estratégicos”, afirma a antropóloga Luísa Girardi, assessora do OPI. “A presença de processos minerários no entorno é, sem dúvida nenhuma, um vetor de ameaça aos povos isolados. Não é apenas a mineração ilegal que impacta os territórios. A mineração legal também.”
Ainda segundo o levantamento, são afetados os indígenas Tamanduá e Pakyi, na TI Piripkura. Eles são os últimos remanescentes dos Piripkura, povo historicamente ameaçado por madeireiros em Mato Grosso e cercado por requerimentos de exploração de estanho, cobre e tântalo.
Pedidos de mineração de níquel e tungstênio, entre outras substâncias, também cercam a Terra Indígena Tanaru (RO), morada do “Índio do Buraco”. Sobrevivente de sucessivos massacres, ele viveu sozinho até seu falecimento em 2022.

Grandes mineradoras têm processos minerários em áreas de isolados
A Anglo American Níquel Ltda, subsidiária da mineradora inglesa Anglo American, lidera o ranking com 83 processos ativos para exploração de minério de cobre em Mato Grosso e Pará, segundo os dados da ANM. Nenhum dos projetos está na etapa de lavra, quando a extração é de fato realizada.
Líder no ranking com 83 processos ativos para exploração de minério de cobre em Mato Grosso e Pará, a Anglo American Níquel anunciou em setembro deste ano a fusão com a Teck para criação do grupo “Anglo Teck”, “campeão global em minerais críticos e um dos cinco maiores produtores globais de cobre”, de acordo com a empresa.
A Anglo American faz parte da Irma (“Iniciativa para a Mineração Responsável”, em tradução livre), que busca executar projetos com responsabilidade social e ambiental. Nesse âmbito, a empresa anunciou em 2021 a desistência de todos os processos minerários sobre terras indígenas no Brasil.
Procurada, a Anglo American disse que não tem “nenhuma licença ou planos para exploração em terras indígenas ou em florestas primárias no Brasil”. Contudo, não respondeu sobre o potencial impacto de suas operações em povos isolados.
Outras mineradoras também constam da lista. A Vale, a maior do país, detém nove processos ativos para exploração de estanho, platina e níquel em áreas do Amazonas, Pará e Rondônia a menos de 40 km de quatro terras indígenas com registros confirmados ou com fortes evidências de isolados. Dos nove pedidos, sete estão em fase de pesquisa e outros dois em disponibilidade.

Em nota enviada à Repórter Brasil, a Vale disse que “não possui processos minerários ativos nas imediações” das terras indígenas mencionadas. A empresa reiterou que as informações no site da ANM “podem estar em processo de atualização, o que pode gerar análises imprecisas”, e que “processos minerários já renunciados e que não pertencem mais à Vale ainda podem aparecer no site”.
O grupo Bemisa Holding S.A, que atua na pesquisa e exploração de minerais em diversas regiões do país, tem 26 processos com impacto sobre isolados. A empresa foi uma das ganhadoras do edital lançado pelo BNDES de apoio a planos de negócios em minerais estratégicos.
Procurada, a empresa disse que “não desenvolve qualquer atividade minerária em terras indígenas ou em áreas que possam afetar os povos indígenas, incluindo comunidades isoladas”. Leia na íntegra os posicionamentos enviados pelas empresas.
Além de grandes empresas, no ranking dos maiores requerentes estão cooperativas de mineradores e pessoas físicas. Para os pesquisadores, há o receio de que as lavras localizadas no entorno de terras indígenas e unidades de conservação sejam usadas para lavar a extração ilegal feita nas áreas protegidas.
“É bastante provável que uma eventual exploração de cassiterita fora da terra Yanomami possa servir para lavar a cassiterita (estanho) extraída ilegalmente dentro do território”, alerta Estêvão Senra Benfica, do ISA (Instituto Socioambiental). O garimpo ilegal de estanho é denunciado na área desde ao menos 1976.
Zona-tampão de 40 km considera vulnerabilidade dos isolados
Os indígenas isolados são “fragmentos de povos massacrados no passado, após o contato com o mundo exterior”, explica Miguel Aparício. Frentes de colonização na Amazônia, por exemplo, espalharam doenças e violência e causaram a morte de indígenas, levando os sobreviventes a buscar refúgio na floresta.
A preocupação com o avanço da mineração nessas áreas não é à toa. Em um passado recente, dezenas de povos quase desapareceram ao entrarem em contato com os não indígenas, como os Parakanã e os Panará, no Pará.

A distância de 40 km foi definida pelo OPI com base em estudos científicos e normas ambientais. A Portaria Interministerial nº 60 de 2015, por exemplo, considera que empreendimentos como rodovias e hidrelétricas causam impactos em terras indígenas quando instaladas dentro desse limite. Para projetos de mineração, a norma cita a distância de 10 km. Mas o OPI leva em conta as características dos isolados para determinar a zona de segurança de 40 km.
“Os povos em isolamento estão em uma condição de vulnerabilidade maior do que a dos povos já contactados. Adotando o princípio de precaução, instituímos essa distância como padrão para o monitoramento”, explica Girardi.
“É uma pressão permanente sobre os isolados. Ao invés de ter um cordão sanitário, existe um cordão de ameaça. São todos os ingredientes para uma nova tragédia humanitária”, complementa Benfica.
Minerais estratégicos têm incentivos públicos, apesar de impactos, diz pesquisador
Considerados estratégicos para as indústrias tecnológica e bélica, esses 16 minerais são a base de componentes como chips, baterias, painéis solares, turbinas eólicas, carros elétricos, ímãs potentes e equipamentos militares. São vistos também como fundamentais para a transição energética por reduzirem a dependência de combustíveis fósseis.
A exploração desses recursos tem sido alvo de disputa geopolítica e despertado interesse de potências como China e Estados Unidos, além de mobilizar autoridades brasileiras.
No Congresso Nacional, um projeto de lei tramita em regime de urgência para a criação de um marco regulatório. O Ministério de Minas e Energia, por sua vez, conduz estudos para formular políticas públicas. E o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) lançou neste ano um programa de R$ 5 bilhões para financiar empreendimentos da cadeia produtiva.

Por serem considerados “estratégicos”, esses projetos de mineração tendem a ganhar incentivos do poder público à revelia de seus impactos ambientais, avalia o pesquisador Bruno Milanez, da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora). “São minerais que sempre foram explorados e exportados, mas agora estão tentando dar uma nova narrativa, dizendo que são estratégicos”, pondera.
“Para os indígenas, ser considerado estratégico não muda absolutamente nada, é mineração do jeito que sempre foi”, comenta Guenter Francisco Loebens, indigenista do Cimi (Conselho Indigenista Missionário) que atua desde 1978 com povos indígenas isolados. “A mineração é uma ameaça permanente nas áreas com a presença de isolados”, finaliza.
Esta reportagem foi realizada com o apoio da Rainforest Investigations Network do Pulitzer Center

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