A MURTA está difícil de achar. A palha não se encontra no território. O rio não é mais o mesmo para a catraia navegar. E os mastros estão cada vez mais distantes. A seca que atingiu a Amazônia em 2023 e 2024, e que se repete em 2025, deixou marcas profundas no Sairé, celebração popular de Alter do Chão, em Santarém (PA), às margens do rio Tapajós.
Mais do que um evento religioso e ancestral, o Sairé é sustentado pela floresta: da palha da piaçabeira que cobre os barracões à murta que perfuma os rituais. Mas cada elemento natural tem se tornado escasso, um efeito da crise climática sobre os modos de vida enraizados na Amazônia.
“O que marca o Sairé é o cheiro da murta. Esse é o cheiro da floresta, é a ligação do povo com a terra. Por isso eu fico preocupado, pois a murta está muito difícil de achar”, conta Elinaldo Santos, o Naldo, 64 anos, indígena Borari e mordomo da festa, guardião do conhecimento ancestral.
“Não podemos trocar o cheiro da festa por mato plantado. Não é assim que funciona a tradição”. Elinaldo Santos, o Naldo, Borari
O Sairé é festejado há cerca de três séculos, segundo registros de colonizadores, mas para os indígenas Borari remonta a uma celebração milenar, por meio de rituais praticados pelo povo há séculos.
A festa reúne hoje elementos indígenas, católicos e afro-amazônicos. De um lado o rito religioso, marcado pelo mastro e pela corte de juízes, foliões, folionas e mordomos, que abre e encerra os cinco dias da festa. Do outro o festival dos botos, incorporado em 1997 e que desde 1998 ocupa o Sairódromo. As agremiações Tucuxi e Cor-de-Rosa disputam um duelo de música, dança e teatro, com alegorias inspiradas em narrativas amazônicas.
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O sincretismo sobreviveu a perseguições e proibições. Nos anos 1940, a Igreja Católica suspendeu a celebração por três décadas, alegando que o lado profano prejudicava a comunidade. Só em 1973 houve a retomada, marcada pelo puxirum, o trabalho coletivo em que cada morador ajuda a erguer os barracões e preparar os rituais.
“Participei desde o início. O Sairé sempre foi isso: puxirum, trabalho coletivo, cada um ajudando do seu jeito”, lembra Naldo, que começou menino e até hoje se dedica à festa. Em 2023, quando comemorava os 50 anos da retomada, sobreviveu à queda de um mastro, que desabou sobre ele. “Só não morri porque Deus me guardou”, diz, emocionado.


A palha da piaçabeira é um dos principais elementos da festa, usada para cobrir mastros e barracões. Costuma ser facilmente encontrada na floresta de Alter do Chão, mas em 2025 precisou ser comprada em razão da escassez.
“A palha não é somente para cobrir a casa. Ela acolhe, refresca, abraça. Quando lutamos para manter a floresta em pé, não é só pela árvore, é pela nossa história, pela nossa cultura, é para que a palha continue existindo na natureza sem precisar ser plantada”, explica o pajé Nato Tupinambá, procurador do Sairé e segunda autoridade do rito religioso.
O mastro, ornado com frutas, fitas e flores, é outro símbolo do Sairé. Representa a fartura e a ligação da floresta com a comunidade. Nato lembra que, pela tradição, a cada duas árvores retiradas para o mastro, são plantadas dezenas de mudas. Mas, diante da especulação imobiliária e da estiagem prolongada, o equilíbrio já não se sustenta.
“A busca dos mastros era feita dentro do Lago Verde [em Alte rdo Chão]. Mas já são dois anos que não conseguimos entrar. A seca e o assoreamento mudaram tudo”, descreve o juiz da festa, Osmar Vieira de Oliveira, 33 anos.
Quando a madeira precisa ser buscada longe, cresce o sentimento de ruptura com o território.


Os dados confirmam a mudança do clima. Em 2024, 69% dos municípios da Amazônia Legal enfrentaram algum grau de seca no primeiro semestre, segundo análise do InfoAmazonia. O número representou alta de 56% em relação a 2023.
Santarém foi uma das cidades mais atingidas, com rios abaixo da média histórica e impactos diretos no transporte fluvial e no abastecimento de comunidades ribeirinhas. Relatório do Ipea sobre mudanças climáticas reforça que a região do Tapajós vive redução hídrica e irregularidade nas chuvas, comprometendo ecossistemas e espécies nativas como a piaçava.


Adaptação deve ser guiada pela defesa do território
Além da seca, o calor extremo também alterou a dinâmica da região. Em 2024, Santarém registrou temperatura recorde de 45,5 °C, e em 2025 a sensação térmica também foi assunto na festa, celebrada este ano entre 18 e 22 de setembro.
O sol esvaziou os barracões do Sairé nas horas mais quentes, obrigando a comunidade a improvisar soluções: climatizadores, pontos de água artificial que faziam “chover” sobre o público, bebedouros e áreas de sombra para idosos e crianças.
Até mesmo os itens de cena precisaram se adaptar. “Antes, as roupas eram muito pesadas, mas este ano optamos por tecidos mais leves, como organza e tule, para suportar o calor durante as apresentações”, explica Guilherme Borari, estudante de Direito e coordenador de itens do Boto Cor-de-Rosa. “Essa mudança foi necessária, mas também coloca restrições à nossa criação, porque limita a variedade de tecidos.”
Além de celebração, o Sairé é um ato de resistência cultural e de resiliência diante da crise climática, avalia Marlena Soares, 35 anos, ribeirinha de Ireteua, gestora ambiental e presidenta do Instituto Regatão. “Aqui o Sairé tem um valor de capital social, econômico, cultural, climático e ambiental inestimável. Não se mede somente em cifras”, afirma.
Ela defende que a adaptação não pode ser vista como remendo, mas pensada como solução de defesa do território. “Cuidar do território é cuidar da nossa cultura. Não basta dizer que vamos nos adaptar. Precisamos de soluções estruturadas: áreas de manejo da palha e da murta, centros de educação ambiental, salvaguarda dos saberes notórios. A adaptação não pode ser pela adaptação. Precisa ser sustentável e ligada ao território.”
Dentro do barracão, a tradição se renova como herança. Mordomos, rezadeiras e jovens dividem funções e responsabilidades. O puxirum (trabalho coletivo) garante que cada geração aprenda a erguer o Sairé, transmitindo cantos, símbolos e gestos. Para Naldo, a força do coletivo é o que mantém a celebração de pé nos novos tempos. “O Sairé está no nosso sangue, nos chama, pois é uma festa da fartura, e a Amazônia de verdade é essa fartura que vem da terra, do alimento ancestral.”


Sairé resiste para que a ‘encantaria’ sobreviva
A perda de biodiversidade em Alter do Chão ameaça também a Encantaria, o universo de seres encantados que habitam rios, lagos e florestas, segundo a tradição Borari e de outros povos tradicionais da Amazônia. Guardiões da natureza, os encantados se manifestam em rezas, rituais de cura e festas como o Sairé, reforçando a ligação entre espiritualidade, território e cultura. Para os Borari, perder a floresta é também perder os encantados que nela habitam, o que significa romper com a base espiritual da vida.
Essa é a importância de manter a festa com elementos vivos. Para Suzane Lima, 19 anos, Rainha do Artesanato no Festival dos Botos, vestir-se com o tronco do araribá é um símbolo de luta. “Vestir uma árvore que flutua é um recado de que os povos daqui sempre souberam e conheceram o poder do território.”
Netto Simões, 36 anos, sacaca (curandeiro) do Boto Cor-de-Rosa, lembra que as figuras do festival também reivindicam a floresta como elemento de cura. “O curandeiro carrega o conhecimento dos nossos antepassados e tem a missão de transmitir à nova geração. Manter viva a encantaria é também cuidar da floresta.”
Maria Eulalia, 27 anos, rainha do festival dos botos e coordenadora do Sairé, traduz esse sentido. “O Sairé é uma vacina de pertencimento, de quem pertence a esse lugar e a essa cultura. É a prova de que esse povo existe e resiste.”
Para ela, a seca que em 2024 deixou catraieiros semanas sem poder trabalhar mostrou o quanto a crise climática ameaça os ofícios tradicionais da Amazônia. “A festa sente esses impactos e precisamos falar sobre isso para que as pessoas enxerguem que não é só um show, é um ato de resistência e de proteção do território.”
O Sairé é um ato de resistência frente ao avanço de projetos de desenvolvimento e da especulação sobre a Amazônia, defende Flávia Emanuelle, 21 anos, estudante de Gestão Pública, Saraipora do rito religioso e Rainha do Lago Verde. “O Lago Verde não é apenas o Lago Verde. É um lugar sagrado que deve ser preservado para o futuro das nossas crianças. O Sairé é uma ação política em defesa do encantamento.”
Ela conclui com a frase que ecoa entre gerações: “Sem Amazônia não tem festa, porque somos territórios de encantarias, e sem essa encantaria chamada floresta viva, o mundo não se sustenta.”
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