PECUARISTAS AUTUADOS por trabalho escravo em fazendas de gado fazem parte da cadeia de fornecimento dos maiores frigoríficos brasileiros: é o que revelam novos casos identificados pela Repórter Brasil.
As relações entre oito produtores flagrados submetendo trabalhadores a condições análogas à escravidão entre 2018 e 2023 e gigantes do setor estão detalhadas no relatório “Fora do radar – Como pecuaristas flagrados com trabalho escravo integram a rede de fornecimento dos maiores frigoríficos do país”, publicado nesta quinta-feira (9).
Além dos pecuaristas responsabilizados por trabalho escravo, foram identificados outros dois produtores autuados por criarem gado ilegalmente dentro da Terra Indígena Krikati, no Maranhão. Entre os dez produtores mencionados no relatório, três também possuem autuações ou embargos por desmatamento ilegal.
A partir da análise de registros de trânsito animal de 2018 a 2025, foi possível identificar que o gado desses criadores foi transferido para fazendas fornecedoras de frigoríficos ou enviado diretamente ao abate em empresas como JBS, Minerva, Marfrig e Frigol, as quatro maiores do país, e outras de atuação regional, como Masterboi, Rio Maria, Pantanal e Frigosaj.
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A investigação foi realizada em parceria com a Climate Rights International, organização que atua na investigação de violações ambientais e aos direitos humanos. A Climate Rights International destacou em seu relatório, também publicado nesta quinta-feira (9), como grandes marcas globais de moda e calçados estão ligadas, por meio de suas cadeias de fornecimento de couro, aos frigoríficos mencionados na investigação da Repórter Brasil.
Trabalho escravo no setor
Trabalhadores que realizam as atividades de abertura dos pastos para criação de bois e, depois, de confecção das cercas e currais, são expostos a condições degradantes e, muitas vezes, submetidos ao trabalho escravo. É o que avalia Maria Gabriela Costa Grandi, procuradora do MPT (Ministério Público do Trabalho) no Pará.
“Uma violação leva a outra”, resume Costa Grandi. “Para o empresário conseguir desmatar, ele vai ter que buscar essa mão de obra informal, e, geralmente, esses trabalhadores são submetidos a condições análogas à de escravidão. Montam suas barracas no meio da mata, dormem ali, se alimentam ali, e vão desmatando”, complementa.

Entre 1995 e 2024, 17,3 mil trabalhadores foram submetidos a condições análogas à escravidão em atividades do setor pecuário, de acordo com dados do MTE (Ministério do Trabalho e Emprego) sistematizados pela Repórter Brasil. Em toda a série histórica, a pecuária concentrou 26% do número de vítimas de trabalho escravo no Brasil.
Mudanças após entrada na Lista Suja
Um dos casos mencionados no relatório é da pecuarista Vanúbia Silva Rodrigues. Em outubro de 2023, a produtora teve seu nome incluído na Lista Suja do trabalho escravo, como é popularmente conhecido o cadastro mantido pelo governo federal com os nomes de empregadores autuados pela prática.
A sua inclusão no cadastro se deveu ao flagrante, realizado em julho de 2022, de dois trabalhadores submetidos a condições análogas à escravidão em uma de suas fazendas, a Presente de Deus, em São Félix do Xingu (PA).

À época, a Repórter Brasil revelou que a produtora era fornecedora da JBS no Pará. Na ocasião, após o questionamento da reportagem, a empresa informou que iria bloquear a pecuarista de sua lista de fornecedores.
Após a entrada na Lista Suja, no entanto, a Fazenda Presente de Deus forneceu gado para engorda a ao menos dois fornecedores diretos da JBS.
Em um dos casos, registros de trânsito animal acessados pela reportagem mostram que a Fazenda Presente de Deus encaminhou, em dezembro de 2023, 144 bovinos para a Fazenda Pé do Morro, em Água Azul do Norte (PA). Cinco dias depois, a propriedade emitiu GTAs (sigla para Guia de Trânsito Animal) para transferir exatamente a mesma quantidade de animais, com as mesmas características de sexo e idade, para a JBS de Redenção (PA).
Em resposta aos questionamentos enviados pela Repórter Brasil, Vanubia Silva Rodrigues declarou apenas que firmou um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) com o MPT, que, segundo a pecuarista, foi cumprido na íntegra. A JBS, por sua vez, não comentou casos específicos e informou apenas que “todos os produtores que constam na lista suja do trabalho escravo estão bloqueados”.
As respostas completas dos pecuaristas e empresas citadas na investigação podem ser lidas na íntegra ao final do relatório.
Fora do radar
A criação de bovinos, que envolvem etapas como cria, recria – fase que começa após o desmame – e engorda, pode ocorrer em diferentes propriedades. Mas apenas aqueles pecuaristas que transferem o animal da fazenda para o abate, os fornecedores direitos, é que são 100% mapeados e monitorados pelos frigoríficos.
Grande parte dos chamados “fornecedores indiretos” ficam fora do radar do monitoramento realizado pelas próprias empresas e das auditorias realizadas para garantir o cumprimento do TAC da Carne. Lançado em 2009, o TAC da Carne é um acordo firmado entre o MPF (Ministério Público Federal) e frigoríficos com operações em 6 dos 9 estados da Amazônia Legal com o objetivo de bloquear a compra de gado de áreas desmatadas ilegalmente após 2008, sobrepostas a unidades de conservação ou terras indígenas e que utilizam mão de obra em condições análogas à escravidão.

“O monitoramento não olha para o fornecedor indireto”, explica Lisandro Inakake, coordenador do programa Boi na Linha, iniciativa criada em 2019 pela associação sem fins lucrativos Imaflora, em parceria com o MPF, para acelerar a implementação dos compromissos assumidos pelo setor. “É um desafio que temos em relação à capacidade de monitorar, que depende da rastreabilidade, e também um desafio em relação às regras de bloqueio [dos acordos setoriais]. Hoje, nós ainda não temos regras para [fornecedores] indiretos”.
“O principal desafio é o rastreamento desse gado. Nós não temos controle individual que mostre de onde esse gado está vindo”, corrobora Igor Spindola, procurador do MPF (Ministério Público Federal) no Pará.
Pessoa física x pessoa jurídica
Outra lacuna de monitoramento do setor ressaltada por especialistas ouvidos pela Repórter Brasil está no simples bloqueio de fornecedores após sua inclusão na Lista Suja, considerando somente o nome e o CPF do autuado – sem verificar suas relações familiares ou empresariais.
Um barraco de lona em um galinheiro desativado e um casebre de madeira eram os alojamentos de quatro trabalhadores resgatados de condições análogas à escravidão nas fazendas Pedra Preta e Futura, áreas contíguas em São Félix do Xingu (PA), fiscalizadas em junho de 2018. No local, auditores fiscais encontraram carne podre armazenada, utilizada para o consumo dos trabalhadores, de acordo com informações do relatório de fiscalização acessado pela reportagem.
Na ocasião, o pecuarista Marcos Borges de Araújo foi autuado por manter quatro trabalhadores em situação análoga à de escravo na propriedade. De acordo com registros de trânsito animal analisados pela Repórter Brasil, ele forneceu gado para as unidades da JBS em Redenção (PA) e Santana do Araguaia (PA) entre junho de 2018, mês da autuação, e agosto de 2023.
O gado vinha de diversas fazendas do pecuarista no Pará. Entre elas, propriedades que receberam bovinos para engorda da Fazenda Pedra Preta, local onde ocorreu o flagrante de trabalho escravo.
A fazenda é de propriedade da Agropecuária Vale dos Sonhos, uma empresa da família Araújo, que tem como sócio controlador a holding Agro Investment Group Participações Societárias S/A. Um processo judicial de 2022, acessado pela Repórter Brasil, indica que Marcos Araújo é casado com a sócia-diretora da holding.

Após ter seu nome incluído na Lista Suja, em abril de 2024, o empregador deixou de enviar animais em seu nome à JBS. A partir de março de 2024, bovinos oriundos da Fazenda Pedra Preta passaram a ser fornecidos à unidade da JBS em Santana do Araguaia (PA) em nome da Agropecuária Vale dos Sonhos, segundo dados de GTAs acessados pela reportagem.
Por meio de seus advogados, Marcos Araújo afirma que “não era responsável pelos colaboradores objeto da fiscalização” nas Pedra Preta e Futura, que “não submeteu nenhum trabalhador a condições análogas à de escravo” e que recorre da autuação na Justiça. A Agropecuária Vale dos Sonhos afirmou que não tem relação jurídica com o produtor Marcos Borges de Araújo e que “opera 100% dentro da legalidade”. A JBS não comentou casos específicos. As respostas podem ser lidas na íntegra ao final do relatório.
Filho é fornecedor direto
Outro caso detalhado na investigação é o da Fazenda Alto Guaporé, em Vila Bela da Santíssima Trindade (MT), de propriedade de Tomas Andrzejewski. Em julho de 2022, 7 trabalhadores foram resgatados no local.
O grupo dormia em barracas de camping instaladas à sombra de uma figueira e tomava banho usando baldes e vasilhas em uma estrutura improvisada e com água de um caminhão pipa. Pelo caso, o pecuarista foi incluído na Lista Suja em outubro de 2024.
Dois meses após a sua inclusão no cadastro, a Fazenda Alto Guaporé encaminhou gado para engorda na Fazenda Flor do Cerrado II, em Cáceres (MT), segundo GTAs acessadas pela reportagem. Os registros indicam que a compra dos animais da Alto Guaporé foi registrada em nome de Alex Kohls Andrzejewski, filho do pecuarista Tomas. Em janeiro de 2025, a Flor do Cerrado II forneceu animais para a unidade da Marfrig em Várzea Grande (MT).

Por meio de sua advogada, Tomas Andrzejewski disse que repudia “qualquer atitude exploratória do trabalhador” e que não tinha conhecimento sobre as condições dos trabalhadores na Fazenda Alto Guaporé porque assumiu a propriedade três meses antes do resgate. Afirma também que o contrato de vendas com o filho foi formalizado em agosto de 2024, antes de sua inclusão na Lista Suja, que ocorreu em outubro.
Alex Kohls Andrzejewski disse à Repórter Brasil que os animais recebidos da Alta Guaporé eram de raça distinta daqueles enviados à Marfrig.
A Marfrig informou que Tomas Andrzejewski está bloqueado de sua lista de fornecedores e que realizou consultas prévias à Lista Suja e não identificou problemas relacionados a Alex Kohls Andrzejewski e a Fazenda Flor do Cerrado II. Leia as respostas na íntegra ao final do relatório.
Bloqueios por localização geográfica
Daniel Azeredo, procurador do MPF e um dos idealizadores do TAC da Carne, sugere que os bloqueios a empreendimentos flagrados utilizando mão de obra escrava sejam feitos também por coordenada geográfica, englobando a propriedade como um todo.
“As listas funcionam por nome e CPF e, assim, elas são muito fáceis de serem violadas. O controle tem que ser por localização geográfica, pela área, latitude, longitude, porque aí não é possível mudar. Aquela localidade fica bloqueada”, analisa.
Leia o relatório completo: FORA DO RADAR – Como pecuaristas flagrados com trabalho escravo entram na rede de fornecimento dos maiores frigoríficos do país
Disponível também em inglês: Under the Radar – How cattle ranchers caught employing slave labor are part of the supply chains of Brazil’s largest meatpacking companies
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