O PRODUTOR RURAL Alair Ribeiro Fernandes obteve crédito privado no mercado de capitais por meio de CRAs (Certificados de Recebíveis do Agronegócio) avaliados em R$ 100 milhões e emitidos em julho de 2025, mesmo após ele ter sido autuado por trabalho escravo.
A fiscalização que responsabilizou o fazendeiro pelo uso de mão de obra em condições análogas à escravidão ocorreu em outubro de 2024, na Fazenda São Francisco, em Bonito (MS). Três trabalhadores paraguaios foram resgatados enquanto faziam a limpeza de terreno para plantio de soja na propriedade, de acordo com o relatório do MTE (Ministério do Trabalho e Emprego).
Durante a fiscalização na Fazenda São Francisco, foram encontrados alojamentos improvisados com lona, camas de madeira e ausência de instalações sanitárias, segundo o relatório. A água para consumo era retirada de um açude próximo. Não havia local adequado para refeições ou descanso, nem lavatórios.
Os auditores também relataram ausência de EPI (equipamentos de proteção individual), falta de formalização dos contratos e inexistência de treinamentos para trabalhos de risco, como operação de motosserra. Segundo eles, os resgatados foram transportados do Paraguai à fazenda sem registro migratório e foram empregados sem registro formal.
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Mesmo com o processo administrativo sobre o flagrante em curso no MTE, Fernandes emitiu uma CPR (Cédula de Produto Rural) Financeira para obter financiamento. Essa cédula serviu como lastro para a emissão dos CRAs, uma categoria de títulos de renda fixa voltados ao financiamento de atividades agrícolas.
As cotas dos CRAs foram vendidas a nove investidores pessoa física e um fundo de investimento, que não tiveram sua identidade revelada. A operação teve como garantia imóveis rurais e safras de soja e milho vinculadas ao produtor, segundo documento financeiro acessado pela Repórter Brasil.
Resgate incomum
Previstos para vencer em 2031, os CRAs foram resgatados antecipadamente pela Ecoagro, a empresa securitizadora responsável pela emissão dos títulos. Isto ocorreu dez dias antes da inclusão de Fernandes na Lista Suja do trabalho escravo, em 6 de outubro de 2025 – ou seja, cerca de um ano após o resgate. A inclusão de nomes na Lista Suja ocorre apenas após os autuados terem acesso a direito de defesa em duas instâncias administrativas no MTE.

O resgate antecipado, segundo comunicado ao mercado divulgado pela Ecoagro, deveu-se ao fato do sojicultor ter resgatado, também antecipadamente, a CPR que servia de lastro para a operação.
Uma fonte do mercado financeiro consultada pela reportagem classificou como pouco usual o resgate prematuro. A emissão dos CRAs havia sido anunciada menos de dois meses antes. A Repórter Brasil procurou o produtor para questionar se a antecipação do vencimento dos títulos se relaciona com a inserção de seu nome na relação de empregadores autuados, mas não obteve resposta até a publicação. A reportagem será atualizada em caso de manifestações futuras.
Medidas regulatórias e políticas corporativas de diversas empresas utilizam a Lista Suja como referência para impor restrições econômicas a fazendeiros flagrados utilizando mão de obra escrava. As normas do Banco Central vetam, por exemplo, a concessão de crédito rural para empregadores incluídos no cadastro.
Procurada, a Ecoagro afirmou ter feito as diligências legais pertinentes e que não tinha conhecimento sobre o caso de trabalho escravo no momento da emissão dos CRAs. Além disso, disse que o resgate antecipado foi uma decisão exclusiva do devedor, sem relação com esse tema.
A Vórtx, empresa que atuou como agente fiduciário da operação – responsável, portanto, por representar os interesses dos investidores e monitorar o cumprimento dos termos da emissão – também afirmou não ter tomado conhecimento do caso. Confira aqui as respostas na íntegra.
Demandas por transparência no crédito agro
“Só a autuação [por trabalho escravo] já é indício para não dar o crédito”, afirma Ademiro Vian, ex-diretor da Febraban (Federação Brasileira de Bancos) e consultor em finanças do agronegócio. Uma securitizadora “criteriosa”, diz, aplica boas práticas de crédito, mesmo quando não obrigada por lei.
O consultor critica a falta de padronização do mercado de títulos do agronegócio. Para Vian, o setor tem baixa transparência e falhas de governança e compliance que seriam inadmissíveis em operações internacionais. Além de regulação estatal, ele defende autorregulação rigorosa pelo mercado e as “boas práticas” de crédito como regra. “É isso que está desmoralizando, de certa forma, o mercado de capitais de títulos do agro”, diz.
Os CRAs funcionam como adiantamento de recursos financeiros, com base em dívidas agrícolas que seriam pagas no futuro. Esse modelo de crédito privado tem crescido e se aproximado do volume de crédito subsidiado pelo governo destinado à atividade rural. Para o ciclo 2025/2026, o governo destinou R$ 516,2 bilhões ao Plano Safra. Já no mercado privado, o estoque de CRAs, ou seja, o conjunto de títulos em circulação, já havia superado R$ 140 bilhões em agosto de 2025, segundo a Anbima (Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais).
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