ENQUANTO chefes de Estado, diplomatas, empresários e lobistas negociam metas climáticas na COP30, em Belém (PA), lideranças indígenas, quilombolas e ribeirinhas levarão a um banco dos réus simbólico uma série de corporações e governos, com o objetivo de denunciar violações ambientais e ataques a defensores da floresta.
O Tribunal dos Povos contra o Ecogenocídio, articulado pela COP do Povo, vai reunir 21 casos de expulsões, racismo ambiental, impunidade e impactos de grandes empreendimentos em territórios de vários países, com foco na Amazônia.
Os casos estão agrupados em três eixos: falsas soluções climáticas, grandes empreendimentos e violência no campo. Em cada um deles, as comunidades atingidas apresentarão suas versões diante de um corpo de juízes populares. O júri ocorrerá em 13 e 14 de novembro, no auditório do Ministério Público Federal, no bairro Umarizal.
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“A importância do tribunal é dizer que não está tudo bem, que essas negociações (da COP30) não representam o anseio de justiça que o povo tem”, afirma Claudelice Santos, do Instituto José Cláudio e Maria. A entidade foi criada em homenagem ao irmão e à cunhada de Claudelice, José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo, assassinados em 2011, em Nova Ipixuna (PA), por defenderem a floresta.
O tribunal é descrito pelos organizadores como um instrumento político e simbólico de denúncia. Para Claudelice, é também uma forma de romper o silêncio em torno das violações que continuam ocorrendo. “Os territórios estão sendo atacados, explorados e especulados sem que os povos do campo, da floresta e das águas sejam ouvidos. Eles continuam pagando o preço da destruição e do envenenamento da natureza”, afirma.
Ela lembra que o evento também é um espaço de memória. “Se toda a humanidade tivesse ouvido, desde Chico Mendes, passando por Dorothy Stang até Zé e Maria, nada disso estaria acontecendo”, diz. “Essas pessoas estão esquecidas, mas foram elas que começaram a lutar pelo clima muito antes da COP existir”, contextualiza.

Para o engenheiro florestal Carlos Augusto Pantoja Ramos, doutorando na UFPA e um dos organizadores, o tribunal dá forma às denúncias que raramente chegam aos espaços oficiais. “A ideia é apresentar para a população que esses problemas existem. Vamos fazer um momento simbólico de análise coletiva e de constrangimento”, define.
Os organizadores dizem que o Tribunal dos Povos busca oferecer um olhar complementar ao das cúpulas oficiais. Enquanto chefes de Estado negociam metas e acordos, comunidades amazônicas e de outros países narram como vivem os impactos diretos do desmatamento, da poluição e da grilagem. “A diferença é que, aqui, quem fala são os atingidos”, entende Pantoja.
Hidrelétrica, pecuária, créditos de carbono e chacina estão entre os casos
Um dos exemplos é o da Usina de Belo Monte, no Pará. Moradores relataram à organização do tribunal que a construção provocou remoções forçadas, perdas econômicas e desestruturação de redes de parentesco e vizinhança. Também apontam falhas no pagamento de indenizações e omissão de órgãos públicos na fiscalização ambiental.
Outro caso trata dos mercados de carbono em Portel, no Marajó. Segundo a organização, contratos foram firmados sem consulta livre, prévia e informada às comunidades locais, como manda a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), da qual o Brasil é signatário. A negociação dos créditos teria ocorrido em condições desiguais e com pouca transparência.
Também será analisada a dragagem do rio Tapajós, autorizada pelo governo federal, que, segundo a COP do Povo, teria sido feita sem estudos de impacto adequados nem consulta a povos indígenas e comunidades extrativistas. Há ainda questionamentos sobre o licenciamento da hidrovia Araguaia-Tocantins, que afeta o território sagrado do Pedral do Lourenção, considerado local de encantados.
Casos de violência no campo também estão entre os julgamentos. O tribunal deve analisar o assassinato de Fernando dos Santos Araújo, sobrevivente do massacre de Pau D’Arco, no Pará, em 2017, e morto quatro anos depois. O documento aponta que o crime permanece sem apuração conclusiva.
Dez trabalhadores sem-terra morreram durante uma operação policial na fazenda Santa Lúcia. Fernando sobreviveu e relatou o que viu. Investigações da Polícia Federal e do Ministério Público Federal apontaram indícios de tortura e execuções à queima-roupa; a defesa dos policiais sustenta que houve confronto e nega as acusações. Depois de relatar ameaças, Fernando foi morto com um tiro.Fernando é um dos protagonistas do longa “Pau d’Arco”, lançado pela Repórter Brasil neste ano. O filme terá sessões diárias durante a COP30, em Belém. Veja a programação completa aqui.
Há ainda denúncias sobre pulverização aérea de agrotóxicos no Maranhão, ataques a aldeias Avá-Guarani no Paraná e uso de trabalho escravo na pecuária da Amazônia, com base em dados oficiais de resgates desde 1995. No caso da pecuária, a Repórter Brasil foi convidada a apresentar parte de suas investigações sobre a cadeia da Amazônia, conduzidas ao longo dos últimos 24 anos.
Desde 1995, mais de 17 mil pessoas foram resgatadas de fazendas de gado, segundo dados do Ministério do Trabalho sistematizados pela organização. A maioria dos casos ocorreu na Amazônia Legal, com destaque para o Pará, estado que lidera tanto o número de resgates quanto o desmatamento ligado à expansão do pasto.
Cuidados com a segurança das testemunhas
O grupo responsável pela organização do tribunal elaborou um protocolo de segurança para proteger as pessoas que prestarão depoimentos. O documento reconhece que, em alguns casos, a repressão e as ameaças impediram visitas às comunidades.
Onze juízes e juízas populares vão conduzir o processo. Entre eles estão o cacique Ramon Tupinambá, da Bahia; a líder quilombola e espiritual Iyalasé Yashodhan Abya Yala Muzunguè CoMPaz; o historiador Luiz Felipe de Alencastro, da Comissão Arns; e a pesquisadora Marcela Vecchione, da UFPA.
Os demais nomes incluem lideranças indígenas, juristas, acadêmicos e organizações de direitos humanos e ambientais no Brasil e no exterior. Todos foram escolhidos, segundo os organizadores, por suas trajetórias de resistência e compromisso com a justiça socioambiental.
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