Ex-prefeito que ‘atacou’ Moratória da Soja desmatou fazenda no MT, aponta estudo

Pesquisa feita a partir do monitoramento de imagens de satélite alerta para o aumento de 5,7 milhões de hectares de plantação do grão em terras da Amazônia em 15 anos
Por Daniela Penha | Edição Bruna Borges

EM CLÁUDIA (MT), o ex-prefeito Altamir Kurten (PSDB) desmatou recentemente 338 hectares de floresta amazônica na Fazenda Santa Maria, aponta a organização Mighty Earth em estudo publicado nesta sexta-feira (7). Ele é um dos signatários de um requerimento contra a Moratória da Soja. O documento pedia ao governador do Mato Grosso o fim dos incentivos fiscais para empresas que aderissem ao pacto que proíbe a compra de soja proveniente de áreas desmatadas no bioma amazônico após 2008.

Em dezembro de 2024, Kurten, que foi prefeito de Cláudia (MT) por três mandatos, obteve autorização da Secretaria de Meio Ambiente do Mato Grosso para desmatar 365 hectares na Fazenda Santa Maria, conforme documento obtido pela Repórter Brasil. De acordo com as análises do estudo da Mighty Earth, feitas com monitoramento de imagens de satélite, o desmatamento de 338 hectares na propriedade ocorreu entre agosto de 2024 e julho de 2025.

Antes de obter a licença para o desmate, em novembro de 2023, ele assinou um requerimento, junto a outros 94 prefeitos do estado, pedindo ao governador Mauro Mendes (União) a retirada dos incentivos fiscais às empresas signatárias da Moratória da Soja e sugerindo a apresentação de uma denúncia do acordo ao Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica).

Em outubro de 2024, o governador do Mato Grosso sancionou uma lei que retira a concessão de incentivos fiscais a empresas que seguem os critérios da moratória.

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O caso do ex-prefeito está entre os dez listados no relatório Rapid Response, que apresenta, segundo a publicação, possíveis vínculos entre o desmatamento recente e a produção de soja no país. “Esse caso específico sinaliza como existem conflitos de interesse. Ele reflete toda essa teia de relações e de interesses particulares que acabam prejudicando o interesse comum da população brasileira, em prol de um grupo muito pequeno”, avalia João Gonçalves, diretor no Brasil da organização Mighty Earth. 

A família Kurten possui histórico de produção de soja em Cláudia. Ademir Kurten, irmão do ex-prefeito, também é proprietário da Fazenda Santa Maria e é citado como produtor em publicações, incluindo a Aprosoja-MT (Associação dos Produtores de Soja e Milho do Estado de Mato Grosso). Além dessa fazenda, os irmãos Kurten possuem, pelo menos, outras duas propriedades na região.

Kurten conta com três empréstimos ativos do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), assinados entre novembro de 2024 e agosto de 2025 e totalizando R$ 4,1 milhões, para investir em atividades agrícolas e pecuárias, mostra o estudo.

O estudo Mighty Earth aponta para o aumento de 5,7 milhões de hectares de soja plantados na Amazônia em 15 anos e alerta para a expansão do setor ao mesmo tempo em que crescem os questionamentos à Moratória. O plantio de soja no bioma, segundo o estudo, cresceu três vezes mais rápido nos últimos 3 anos do que nos 12 anteriores.

Histórico de investigações

Em 2023, Kurten foi alvo de uma investigação sobre fraude criminal em autorizações ambientais para manejo florestal sustentável, que envolvia a Secretaria do Meio Ambiente do Mato Grosso, informa o G1. Denúncia do Cimi (Conselho Indigenista Missionário) indica que também houve extração ilegal de madeira dentro do Território Indígena do Xingu.

Em 2024, ele foi denunciado pelo MPF (Ministério Público Federal) por extração ilegal de cascalho.

A Repórter Brasil tentou contactar Kurten, por meio de seu advogado, mas não houve respostas até a publicação da reportagem. O espaço segue aberto para manifestações futuras. 

Ofensiva contra a Moratória

Firmada em 2006, a Moratória da Soja é considerada um dos principais instrumentos de preservação da floresta amazônica. De acordo com dados do GTS (Grupo de Trabalho da Soja), até 2022 o acordo contribuiu para a redução de 69% de derrubada de mata nativa nos municípios da Amazônia monitorados. Entre as 24 signatárias do pacto, estão gigantes do setor, como Amaggi, Bunge, Cargill e Cofco.

Organizações ambientalistas que monitoram o setor identificam, entretanto, que o pacto vem passando por ofensivas nos últimos meses. Além do Mato Grosso, em julho de 2024, o governador de Rondônia sancionou uma lei que retirou incentivos fiscais de empresas que seguissem os critérios do acordo, o que também aconteceu no Maranhão.

Em agosto de 2025, a Superintendência-geral do Cade suspendeu preventivamente a Moratória da Soja e instaurou um processo administrativo contra associações e empresas que integram o GTS, composto também por ONGs e o governo federal. A Abiove (Associação Brasileira da Indústria de Óleos Vegetais), a Anec (Associação Nacional dos Exportadores de Cereais) e 30 exportadoras também foram objetos da ação.

O Cade investigou uma possível formação de cartel entre as exportadoras de soja, o que afetaria a livre concorrência. A Justiça Federal chegou a derrubar a ordem de suspensão do órgão, alegando que a decisão do superintendente-geral não poderia valer até que o recurso fosse julgado. Ao analisar o mérito em setembro, o conselho decidiu adiar a suspensão do acordo para 2026. Na última quarta-feira (5), o ministro Flávio Dino, do STF, determinou a suspensão de todas as ações em âmbito judicial e administrativo, inclusive no Cade, que discutem a validade da Moratória da Soja até o julgamento final sobre o pacto. O tema será julgado pela Corte em julgamento virtual entre os dias 14 e 25 deste mês.

Para Gonçalves, essa ofensiva colabora para o aumento do desmatamento vinculado à soja na Amazônia, identificado pelo estudo nos últimos meses. “Quando você tem um ambiente mais propício à ilegalidade, onde não vai haver a fiscalização e leis estabelecidas ou mecanismos estabelecidos se mostram enfraquecidos, você abre espaço para quem quer agir de uma maneira ilegal”, analisa.

Duas ‘São Paulo’ por ano em soja

Entre 2008 e 2023, a área para cultivo de soja na Amazônia passou de aproximadamente 1,5 milhão para 7,2 milhões de hectares. É como se, a cada ano, a Amazônia passasse a ter uma área equivalente a duas vezes a cidade de São Paulo (150 mil hectares) em plantação de soja, indica o estudo.

Da expansão total da soja no período, 521,8 mil hectares, que representam 9% do total, ocorreram em áreas anteriormente ocupadas por vegetação nativa, sendo 7% em formações florestais e 2% em outros tipos de vegetação nativa.

“O Brasil está ganhando mais espaço na soja. O que é ótimo”, opina Gonçalves. Mas ele salienta: “O país tem que ser capaz de produzir soja respeitando as leis ambientais e aproveitando toda a área que já foi desmatada. Não precisa desmatar mais áreas para produzir soja, principalmente na Amazônia”.

Para analisar a expansão e o desmatamento possivelmente atrelado à soja, o estudo da  Mighty Earth utilizou dados da Global Forest Watch, uma plataforma da Universidade de Maryland (Estados Unidos), que faz o monitoramento da soja na América do Sul, além de outras plataformas de monitoramento como MapBiomas e o Deter (Sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real), programa do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), que alerta sobre desmatamento e degradação florestal no Brasil.

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