‘Falta vontade política de Lula’, diz liderança indígena que parou a COP30

Após o protesto de sexta que fechou a entrada da COP, Alessandra Munduruku pede ao presidente Lula a revogação de um decreto e denuncia que hidrovias e a expansão da soja colocam o rio Tapajós em risco
Por Daniel Camargos | Fotos Fernando Martinho

DE BELÉM (PA) – Para a líder indígena Alessandra Munduruku, “falta vontade política de Lula” para impedir que o rio Tapajós seja transformado em uma hidrovia industrial. O desejo dela e de seu povo, que vive no oeste do Pará e no norte do Mato Grosso, é que o presidente revogue o decreto 12.600/2025, assinado em agosto.

“O Tapajós não é mercadoria, o Tapajós não pode se negociar, é vida, somos nós”, disse Alessandra em entrevista à Repórter Brasil, na manhã de sábado (15), um dia depois do protesto que bloqueou por cerca de quatro horas a entrada da Blue Zone da COP30, em Belém, e impediu a passagem das delegações.

O grupo manteve os portões fechados até que o presidente da conferência e ministras do governo federal aceitassem dialogar. Após a reunião, os indígenas liberaram a entrada de delegações. A ação chamou atenção de países e observadores internacionais.

Na sexta-feira (14), a reportagem acompanhou a mobilização dos Munduruku desde a madrugada, quando partiram em dois ônibus em direção à Zona Azul, área restrita às autoridades na COP30. Quando chegaram e se depararam com os portões fechados e foram impedidos de entrar, ela disse: “Se a gente não entra, ninguém entra”.

Alessandra entende que o bloqueio da entrada obrigou o governo e a organização da conferência a agir. “A Marina [Silva, ministra do Meio Ambiente,] pode articular para ter uma agenda com o Lula”, afirmou.

Os representantes do governo disseram na conversa que somente o presidente Lula pode revogar o decreto. Por isso, o movimento indígena quer tratar diretamente com ele, porque, segundo Alessandra, “o Tapajós virou mercadoria quando se faz esse decreto”. O Decreto 12.600 de 2025 instituiu o Plano Nacional de Hidrovias e incluiu os rios Tapajós, Madeira e Tocantins como eixos prioritários de navegação.

“A gente sabe da importância do nosso rio, como surgiu o nosso rio, como ele é feito, qual é a cosmologia do rio para o povo Munduruku”, disse, reforçando que o Tapajós não é um mero curso d’água, mas um ser vivo e a base espiritual que sustenta o modo de vida Munduruku.

“Lula anda com os povos indígenas, demarca algumas terras, mas ainda não entendeu o significado da espiritualidade, não entendeu o local sagrado e a ancestralidade do rio”. Alessandra Munduruku, liderança indígena, na Marcha Mundial pelo Clima, na COP30

Nas cartas divulgadas pelo Movimento Ipereg Ayu, o decreto do governo federal é avaliado como uma abertura de caminho para novas dragagens, derrocamento de pedrais sagrados e para a ampliação acelerada de portos privados, transformando trechos do rio em corredor de exportação de soja.

Alessandra também criticou a forma como os governos priorizam investimentos. “As verbas muitas vezes vêm muito mais para o agronegócio do que para as populações tradicionais”, afirmou.

Ela descreveu os efeitos concretos da expansão da soja e da presença de portos no rio. Relatou um fluxo constante de carretas, barcaças atravessando o Tapajós, poeira de grãos caindo na água e peixes com cheiro ruim. Mencionou casos de expulsão de pescadores de áreas tradicionais e de pessoas indenizadas que, segundo ela, “muitas vezes já morreram com tristeza, com depressão”, após perderem seu lugar de origem.

Marcha Mundial pelo Clima reuniu milhares de pessoas nas ruas de Belém neste sábado (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)
Marcha Mundial pelo Clima reuniu milhares de pessoas nas ruas de Belém neste sábado (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

Ferrovia e demarcações também estão na pauta de reivindicações

O protesto não se limitou à pauta das hidrovias. Os Munduruku também exigem o cancelamento dos planos para construção da Ferrogrão, afirmando que a implantação da aumentará o fluxo de grãos até Miritituba (PA), nas margens do rio Tapajós, e multiplicará o trânsito de barcaças.

Alessandra afirmou que a ação também tinha como objetivo pressionar o governo sobre a demarcação de terras. “Ficamos sabendo que o nosso território pode ser demarcado”, disse, avaliando que o ato abriu espaço para avanços.

A Terra Indígena Sawré Muybu teve a posse tradicional declarada em setembro de 2024, com 178 mil hectares, e a Funai contratou empresa para iniciar a instalação dos marcos de demarcação física. Ela afirma que espera que o governo finalize o processo e avance em outras áreas reivindicadas.

Além dos impactos logísticos, o território Munduruku convive com a contaminação por mercúrio causada pelo garimpo de ouro. A Repórter Brasil já mostrou crianças com malformações, atraso no desenvolvimento e falta de locomoção.

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