Guarani Kaiowá é morto com tiro na testa em área de conflito no MS

Lideranças indígenas atribuem a pistoleiros o ataque contra a retomada Pyelito Kue, no município de Iguatemi (MS), neste domingo (16). Ao menos outros quatro Guarani-Kaiowá estão feridos
Por Gabriela Moncau | Edição Carlos Juliano Barros

UM INDÍGENA de 36 anos, Vicente Fernandes Vilhalva, foi morto com um tiro na testa em um ataque atribuído a pistoleiros contra a retomada (ocupação) Pyelito Kue, no município de Iguatemi (MS), neste domingo (16). Ao menos outros quatro Guarani Kaiowá ficaram feridos. A área integra a Terra Indígena (TI) Iguatemipeguá I, sobreposta à Fazenda Cachoeira e retomada pelos indígenas em 3 de novembro. 

O ataque teria sido realizado entre 4h e 5h por cerca de 20 homens que já teriam chegado atirando, segundo lideranças ouvidas pela reportagem. Elas relatam que barracos de lona e pertences na retomada foram incendiados e destruídos por um trator. Ainda de acordo com os Guarani Kaiowá, pistoleiros teriam tentado levar o corpo de Vicente Vilhalva, mas foram impedidos pelos indígenas. 

“Perdemos um guerreiro que sempre esteve na luta em defesa dos direitos dos povos indígenas, Vicente era um dos porta-vozes da comunidade. Não tivemos chance, os jagunços estavam com arma de fogo, calibre .12 e .38 e acertaram um dos nossos”, relata Xe Ryvy Rendy’i, um indígena da comunidade. 

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“Estamos muito preocupados e as autoridades demoraram muito para chegar. As crianças estão assustadas”, afirma Lide Solano, cacique de Pyelito Kue. A comunidade, próxima à fronteira com o Paraguai, fica a 25 km de estrada de terra do centro de Iguatemi. Uma ponte que dá acesso ao local teria sido interditada por fazendeiros da região, de acordo com os indígenas. O caminho alternativo é mais longo, pela cidade de Amambai (MS). 

“A ponte está interditada. Parece que já estavam se organizando para atacar a comunidade. Porque nunca arrumaram a ponte. Só depois que fizemos a retomada, decidiram bloquear. Foi um crime bem organizado. Nenhum carro está passando por lá”, denuncia Rendy’i. 

Apesar de as autoridades federais terem sido acionadas pelos indígenas assim que houve o ataque, a FNSP (Força Nacional de Segurança Pública) só chegou ao local às 9h, quatro horas depois de os tiros cessarem. Servidores da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) e da Sesai (Secretaria Especial de Saúde Indígena) também se dirigiram ao local no final da manhã deste domingo. 

“Fomos cercados. Os pistoleiros não chegaram para conversar, já chegaram atirando. Não temos armas, não temos nenhuma chance de defesa. Recuamos e fomos até a aldeia, mas eles seguiram atirando fora da retomada, nas nossas casas. Queimaram tudo na retomada: os barracos, as panelas, as cadeiras”, conta uma das lideranças de Pyelito Kue, sob anonimato. 

Os indígenas teriam visto agentes da Polícia Militar do Mato Grosso do Sul e do DOF (Departamento de Operações de Fronteira) entre os homens responsáveis pelo ataque. “Vieram a pé, estavam com colete preto”, descreve outro indígena ouvido pela reportagem sob anonimato.

A Repórter Brasil enviou um pedido de posicionamento à Secretaria de Segurança Pública do governo de Eduardo Riedel (PP), mas não obteve resposta até o fechamento desta matéria. Caso haja retorno, o texto será atualizado

Demarcação de território está parada desde 2013

Recém ocupada pelos indígenas, a Fazenda Cachoeira está arrendada por duas empresas de exportação de carne: a Agropecuária Santa Cruz e a Agropecuária Guaxuma. A reportagem entrou em contato neste domingo com as duas companhias, mas não obteve retorno até o fechamento. O texto será atualizado se um posicionamento for recebido.

Em matéria publicada no site o Joio e o Trigo em 12 de novembro, um advogado da Agropecuária Guaxuma afirmou que a empresa desconhece o conflito na região e que “não possui qualquer tipo de segurança na propriedade arrendada”.

A Cachoeira é uma das 44 propriedades sobrepostas à TI Iguatemipeguá I. A área de 41.714 hectares abarca os tekohas (“lugar onde se é”, em guarani) Pyelito Kue e Mbaraka’y e foi delimitada pela Funai em 2013. Desde então, no entanto, o processo demarcatório está parado.

Vivendo atualmente em uma aldeia de 97 hectares traçada a partir de um acordo judicial de 2014, as cerca de 120 famílias de Pyelito Kue alegam estar espremidas, sem condições de plantar e passando fome.

Diante da estagnação do processo demarcatório, a comunidade decidiu atravessar a estrada de terra e ocupar outro pedaço considerado por eles como território tradicional. Os indígenas passaram 22 dias escondidos em um pequeno trecho de mata na Fazenda Cachoeira e, desde o dia 3 de novembro, montaram acampamento em campo aberto, no meio da pastagem de gado. 

O ataque que matou Vicente Vilhalva é o quarto desde o início do mês. O saldo dos outros, ocorridos entre 3 e 5 de novembro, foi de quatro indígenas feridos a balas de borracha e duas crianças machucadas depois de suas mães terem caído, ao correrem, com elas no colo.

Os cartuchos e as fotografias de perfurações de casas e de uma panela por balas letais foram entregues à Delegacia da Polícia Federal de Naviraí (MS), onde os indígenas registraram um boletim de ocorrência.  

Desde o dia 5 de novembro, a Força Nacional visita a região. A reportagem esteve no local e constatou que os agentes têm feito patrulhas pontuais, sem presença fixa na área.

O conflito fundiário no Mato Grosso do Sul escalou desde o fim de setembro, quando indígenas da TI Guyraroká, que também aguarda a demarcação, foram reprimidos pela Polícia Militar após retomarem área da Fazenda Ipuitã, em Caarapó (MS). 

O governo federal criou um GTT (Grupo de Trabalho Técnico) interministerial com a finalidade de “elaborar diagnóstico com subsídios técnicos para a mediação de conflitos fundiários envolvendo povos indígenas no sul do estado de Mato Grosso do Sul, incluindo a realização de levantamentos e estudos sobre áreas públicas e privadas”, segundo publicação no Diário Oficial da União (DOU) em 3 de novembro.

O GTT é coordenado pelo juiz Leador Machado, diretor do Departamento de Mediação e Conciliação de Conflitos Agrários do MDA (Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar), e está com a atuação focada nos tekohas Guyraroká e Passo Piraju, sobre os quais devem publicar um relatório na próxima semana. 

Procurado pela Repórter Brasil, Machado informou que está acompanhando a situação de Pyelito Kue. “Acredito que nossa contribuição seja incluir também essa matança no relatório, como forma de destacar a gravidade e a necessidade de uma intervenção mais coordenada do governo federal afim de evitar esse verdadeiro genocídio”, destaca. 

“A luta dos povos indígenas nunca foi fácil. A gente clama e grita pelos nossos direitos, mas sempre tem derramamento de sangue. Já tivemos nossa terra identificada e delimitada, mas os jagunços e fazendeiros que estão dentro do nosso território tem dinheiro para comprar armas e nós só temos nosso mbaraká [instrumento musical sagrado]”, diz Xe Ryvy Rendy’i. “Peço a todas as autoridades que venham demarcar nossa terra. Olha como estamos. Queremos nosso território”, finaliza. 

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Indígena Guarani-Kaiowá de 36 anos é morto com tiro na testa em ataque atribuído a pistoleiros no MS (Imagem: Reprodução/Comunidade Pyelito Kue)
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