DE BELÉM (PA) — Dos 1.003 assassinatos no campo registrados no Pará nos últimos 45 anos, apenas 61 chegaram a julgamento. Destes processos, houve denúncia de mandantes em 30 casos (metade deles acabou absolvida), enquanto 42 pistoleiros foram condenados como executores. A maior parte dos homicídios nunca teve inquérito concluído. As descobertas estão no livro “Assassinatos e Impunidade no Campo no Pará: 1980 a 2024” (Editora Dialética), lançado nesta quinta-feira (20) na COP do Povo, em Belém (PA).
A obra de 800 páginas foi escrita pelo advogado da CPT (Comissão Pastoral da Terra) em Marabá, José Batista Gonçalves Afonso, e pelo professor e historiador Airton dos Reis Pereira. Eles organizaram os arquivos reunidos desde o fim dos anos 1970 pela CPT em Xinguara, Marabá, Belém e Goiânia.
O livro é dividido em quatro capítulos temáticos: camponeses e indígenas; lideranças rurais; chacinas e massacres: e peões mortos em conflitos trabalhistas ou em situações de escravidão contemporânea. A obra traz ainda a lista das vítimas, acompanhada de textos de análise dos autores e de pesquisadores convidados.
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Um terço das 1.003 mortes ocorreu em chacinas
No capítulo dedicado às chacinas e massacres, os autores explicam a diferença entre os dois tipos de ataque: chacinas ocorrem quando várias pessoas são mortas em um mesmo episódio, em local delimitado; massacres envolvem ações mais amplas, planejadas, com grande número de agentes armados ou repressão estatal.
Ao todo, foram identificadas 59 chacinas em 45 anos, somando 317 mortes, o equivalente a cerca de um terço de todos os assassinatos registrados.
Já os massacres foram três. O primeiro foi o ataque aos garimpeiros na ponte do Rio Tocantins, em 1987, quando a Polícia Militar reprimiu a interdição feita por cerca de 1.500 garimpeiros de Serra Pelada. Três corpos foram reconhecidos oficialmente, mas depoimentos coletados à época indicam que ao todo foram 93 mortos. Houve relatos de pescadores que teriam presenciado corpos boiando no rio dias após o massacre, mas foram silenciados e ameaçados pela Polícia Militar do Pará.

Outro caso detalhado é o Massacre de Eldorado do Carajás, em 1996, quando 19 integrantes do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra) foram mortos em operação policial na Curva do S. Dos 19 mortos, dez receberam tiros à queima-roupa.
O Massacre de Pau D’Arco, em 2017, também aparece como marco recente da violência no campo. Dez trabalhadores foram mortos dentro da Fazenda Santa Lúcia por um grupo formado por policiais civis e militares e agentes privados de segurança, durante operação que alegava o cumprimento de mandados de prisão.
O papel da ditadura militar na violência rural no Pará
O sul e sudeste do Pará concentram 73% dos assassinatos. As duas regiões são marcadas por disputa pela terra, grandes empreendimentos agropecuários e forte presença de pistoleiros. A pesquisa aponta que órgãos fundiários dos governos federal e estadual atuaram historicamente para favorecer a expansão de fazendas e regularizar áreas ocupadas por grileiros.
A violência fundiária nessa porção do Pará tem relação direta com a presença militar instalada na região após a descoberta da Guerrilha do Araguaia, no final dos anos 1960. A repressão aos guerrilheiros do PCdoB transformou a área entre Marabá e São Geraldo do Araguaia em zona de vigilância permanente.
Camponeses passaram a ser investigados, detidos e torturados sob suspeita de colaboração. O aparato montado durante a ditadura permaneceu atuando nos anos seguintes e influenciou a política fundiária e sindical local. O GETAT (Grupo Executivo de Terra Araguaia Tocantins) foi instalado pelo governo militar para administrar conflitos, mas acabou fortalecendo a regularização de áreas griladas e o poder dos grandes fazendeiros.

Figuras da repressão, como Sebastião Rodrigues de Moura, o Coronel Curió, que participou das operações contra a guerrilha, tiveram participação direta na intervenção em sindicatos rurais e na perseguição a lideranças como Raimundo Ferreira Lima, o Gringo, assassinado em 1980, caso que marca o início da série histórica do livro.
O município de Curionópolis, surgido a partir da currutela do garimpo de Serra Pelada, leva o nome do militar. Curió controlou o garimpo nos anos 1980, foi deputado federal entre 1982 e 1986 e depois prefeito do município em 2000 e 2004, reeleito e cassado em 2006. Morreu em 2023, aos 84 anos.
Registro de 227 mortes de peões sem nome
Batista conta que a ideia de sistematizar os casos surgiu na pandemia, quando ficou recluso em casa. Ele atua há 29 anos na CPT e destacou que conheceu, devido ao trabalho, muitas das pessoas citadas na lista de mortos. Inicialmente, planejava registrar apenas os crimes do sul e sudeste do estado, mas decidiu ampliar para todo o Pará. O trabalho foi feito nos intervalos do expediente e finais de semana.
Segundo o livro, 245 das 1.003 vítimas não foram identificadas, principalmente trabalhadores migrantes mortos em conflitos de terra ou em tentativas de fuga de situações de trabalho escravo. No capítulo dedicado a peões e vítimas de conflitos trabalhistas, são 227 mortos, muitos conhecidos apenas pelos apelidos, como “Ceará”, “Piauí” ou “Pernambuco”.
“São pessoas para as quais não foi possível ter acesso ao nome nem aos laços familiares”, disse Batista. Airton reforçou que a presença de vítimas sem identificação foi constante nos arquivos. Ele lembrou que a migração incentivada pela ditadura militar, que estimulou a expansão pecuária na Amazônia, levou milhares de trabalhadores nordestinos à derrubada da floresta para formação de pastagens. “Muitos assassinados eram trabalhadores escravizados que tentavam fugir e eram mortos”, afirmou.

O historiador também detalhou casos de violência extrema praticada por pistoleiros contratados para expulsar os posseiros. Entre eles está Sebastião da Terezona, a quem são atribuídas seis chacinas entre 1985 e 1986, somando 49 mortos. “Ele matava crianças, famílias inteiras, tocava fogo no barraco, mutilava os corpos e queimava”, disse Airton.
Terezona foi preso em 1985, fugiu da cadeia com apoio de policiais e voltou à prisão anos depois, condenado por outro crime. Morreu em 1995, durante uma rebelião na penitenciária de segurança máxima de Santa Isabel, em Belém, sem ter sido julgado pelos ataques contra camponeses.
‘Não podemos aceitar a impunidade’, diz filha de sindicalista assassinado
Na parte final, o livro reúne contribuições de pessoas ligadas à história agrária do Pará, entre elas: Francisco de Assis Soledade (ex-posseiro e sindicalista), Luzia Canuto (professora e filha do sindicalista João Canuto), Ricardo Rezende Figueira (padre e pesquisador da UFRJ), Emmanuel Wambergue (ex-coordenador da CPT), Girolamo Treccani (advogado e professor da UFPA), Ana de Souza Pinto (agente da CPT), padre Paulo Joanil da Silva e Ayala Lindabeth Dias Ferreira (militante do MST). A foto da capa é do fotógrafo João Laet.
Durante o lançamento, Luzia Canuto falou sobre o assassinato de seu pai, João Canuto de Oliveira, morto em 1985. Seu caso está registrado no livro como uma das mortes de lideranças sindicais no período. “Quem perdeu um parente sofre, tem sentimentos e não aceita a impunidade”, disse.

Batista afirmou que o livro pretende ser também um instrumento de denúncia. A base de dados, organizada em listas nominais, fotografias, recortes de jornal e processos judiciais, será disponibilizada às instituições públicas para subsidiar novas investigações. “Não é apenas um livro. É um dossiê. Ele foi feito para preservar a memória dessas pessoas, que não podem ser esquecidas”, disse.
Para Batista e Airton, a publicação reúne a memória de 45 anos de violência registrada pela CPT. “É uma denúncia, mas também um registro para que esses crimes não se percam”, afirmou Batista.
Ao final do evento, Claudelice Santos, irmã de Zé Cláudio e cunhada de Maria, ambientalistas assassinados em 2011, reforçou o sentido político da publicação. “Aos nossos mortos nenhum minuto de silêncio, mas toda uma vida de luta”, afirmou. Claudelice é uma das organizadoras da Casa do Povo, junto da CPT, espaço criado paralelo à COP30 que reúne atividades das comunidades amazônicas.
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