O MINISTRO DO TRABALHO Luiz Marinho anulou os efeitos de uma fiscalização realizada por auditores fiscais do governo federal que resgatou cinco trabalhadores de condições análogas às de escravo na extração de sisal, fibra utilizada na fabricação de cordas e tapetes. O caso aconteceu em 2023, em Jacobina, na Bahia. A decisão do ministro foi tomada em 18 de novembro, mas só veio a público nos últimos dias.
É a primeira vez que um ministro do Trabalho anulou os autos de infração de uma fiscalização que resultou no resgate de trabalhadores escravizados após ter chamado para si a decisão final sobre eles. Desde setembro, a cúpula do MTE (Ministério do Trabalho e Emprego) fez uso da “avocação” (chamar para si a competência final sobre um ato administrativo) por três vezes, atendendo ao pedido de empregadores e intervindo em inspeção feita por auditores fiscais.
Além do caso envolvendo a Apaeb (Associação Comunitária de Produção e Comercialização do Sisal), a JBS Aves e Santa Colomba Agropecuária já haviam tido seus casos avocados pelo ministro. Não foram divulgadas informações sobre a análise ministerial desses dois últimos casos.
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O ministro também determinou a exclusão da Apaeb, autuada na ação no município baiano, da chamada Lista Suja do trabalho escravo, cadastro oficial com os dados de empregadores responsabilizados administrativamente pelo crime.
A associação havia sido incluída na relação em outubro de 2024. A Lista Suja é usada por empresas públicas e privadas, como bancos e supermercados, em seus gerenciamentos de risco, entre outras finalidades.
Em nota enviada à reportagem, o MTE afirma que a análise dos três casos “foi totalmente técnica”, realizada pela consultoria jurídica do ministério.
No entanto, entidades da sociedade civil e o MPT (Ministério Público do Trabalho) — órgão autônomo, sem vinculação ao governo federal — contestam a decisão de Marinho e veem risco de politização do sistema de combate ao trabalho escravo.
Nesta sexta-feira (28), o MPT entrou na Justiça pedindo a suspensão das três avocações, a manutenção da Apaeb na Lista Suja (veja detalhes abaixo) e a inclusão da JBS Aves e da Santa Colomba Agropecuária na relação. Devido à avocação, a inserção das empresas no cadastro foi suspenso, beneficiando-as comercialmente.
Segundo o procurador do trabalho Luciano Aragão, do MPT, as avocações ocorreram após o encerramento dos processos administrativos relativos aos três casos. Ele explica que isso contraria uma portaria do próprio MTE, de 2021, “que estabelece que as decisões se tornam definitivas após o julgamento do recurso da parte interessada”.
“O que torna ainda mais grave a última avocação [do caso Apaeb] é que o ministro determinou expressamente a dispensa de publicação do ato avocatório, o que possui o efeito prático de ocultar da sociedade e do sistema de Justiça a exclusão da empresa da Lista Suja e os próprios motivos que levaram a isso”, acrescenta Aragão. “É uma conduta que vai contra o próprio objetivo da lista, que é justamente o de dar transparência aos casos de trabalho escravo.”

“Nós entendemos que a avocação, independente da anulação dos autos de infração, já é um equívoco tremendo do ministro”, diz Bob Machado, presidente do Sinait (Sindicato Nacional dos Auditores-Fiscais do Trabalho). Para ele, Marinho “usurpou a análise técnico-jurídica” realizada pelos auditores fiscais durante a inspeção trabalhista.
Na avaliação de Machado, a avocação é um instrumento do passado, utilizado durante a ditadura militar. “E nunca foi usado em favor dos trabalhadores”, questiona.
Já para Mário Diniz, coordenador da Anafitra (Associação Nacional dos Auditores-Fiscais do Trabalho), a decisão de Marinho representa uma “ingratidão” com a missão institucional dos auditores-fiscais, uma vez “que o combate ao trabalho escravo é um dos carros chefes do próprio Ministério do Trabalho”. “Está havendo aí um completo desvio de finalidade, no que diz respeito aos princípios da administração pública”, acrescenta.
Diniz afirma que a entidade vai organizar uma paralisação nacional de todas as ações de combate ao trabalho escravo, “até que ele [Marinho] reveja esse tipo de postura”.
O que diz o Ministério do Trabalho
“O ministro apenas respaldou essa avaliação para, inclusive, garantir segurança jurídica e reforçar o trabalho dos auditores-fiscais do Trabalho, evitando problemas futuros na Justiça e assegurando que as ações continuem firmes e eficazes”, diz a nota enviada à reportagem.
O ministério afirma, ainda, não existir “qualquer falta” de apoio às ações de combate ao trabalho escravo e reafirmar o compromisso com a proteção dos trabalhadores.
Também procurada, a Apaeb não retornou até o fechamento desta reportagem. O espaço segue aberto a manifestações.
Ministério determinou que a corregedoria verifique auditores fiscais
Segundo o relatório de fiscalização obtido pela Repórter Brasil, a Apaeb foi responsabilizada por ter submetido funcionários a condições degradantes, um dos elementos que configuram o “trabalho análogo ao de escravo”, de acordo com o artigo 149 do Código Penal brasileiro.
A decisão do ministro Luiz Marinho de suspender a fiscalização aconteceu após ele assumir para si o caso, a pedido da Apaeb. Foi a terceira vez em pouco mais de dois meses que a chefia do MTE utilizou essa prerrogativa.
Avocações anteriores, que adiaram a inclusão na Lista Suja da JBS Aves e da Santa Colomba Agropecuária, já haviam gerado críticas de auditores fiscais do Trabalho, do MPT (Ministério Público do Trabalho) e de entidades da sociedade civil que atuam no combate a esse crime.
No final de setembro, ao menos nove auditores fiscais do MTE deixaram cargos de coordenação regional de combate ao trabalho escravo em todo o país em protesto contra a avocação, por Luiz Marinho, do caso da JBS Aves, empresa da maior processadora de proteína animal do mundo.

Na decisão de 18 de novembro, o ministro do Trabalho também determinou que a Corregedoria do ministério verifique a atuação dos auditores fiscais que realizaram a inspeção trabalhista do caso envolvendo a Apaeb.
Segundo Bob Machado, do Sinait, a categoria dos auditores fiscais está se sentindo ameaçada. “Cria esse sentimento de até que ponto nós podemos buscar o cumprimento da legislação trabalhista? Isso realmente gerou uma comoção dentro da inspeção trabalhista”, diz. “E nós, obviamente, não vamos aceitar qualquer tipo de interferência, qualquer tipo de ameaça por parte de quem quer que seja. Esperamos que o ministro reveja o ato”, completa.
Entenda os casos
O resgate dos cinco trabalhadores da extração de sisal aconteceu no final de 2023. Eles trabalhavam no corte e desfibramento da planta. Segundo o relatório de fiscalização obtido pela Repórter Brasil, nenhuma medida de segurança e saúde do trabalho teria sido adotada.
Ainda de acordo com o relatório, as vítimas estariam expostas a ferramentas perfurocortantes, a sobrecarga física, a intempéries como calor e radiação solar e a ataques de animais silvestres. Nenhum equipamento de proteção individual foi fornecido.
Segundo a fiscalização, os alimentos eram cozidos ao lado de um motor, em um fogareiro improvisado no chão. Os alojamentos dos trabalhadores, que serviam também de local de refeições e armazenamento de ferramentas e pertences pessoais, ficavam em ruínas de casas antigas destruídas, com paredes comprometidas, cobertura de telhas incompletas e piso parcial de cimento queimado. Não havia água encanada, energia elétrica nem banheiro.

Fiscais apontaram trabalho escravo em granja fornecedora da JBS Aves no RS
Em dezembro do ano passado, uma fiscalização do governo federal autuou uma granja fornecedora da JBS Aves por trabalho escravo em Arvorezinha, a 200 quilômetros da capital gaúcha. Em abril deste ano, a empresa também foi responsabilizada.
Segundo os responsáveis pelo flagrante, o grupo se dedicava à apanha de aves e estaria submetido a jornadas exaustivas, de até 16 horas diárias. Os trabalhadores teriam se alimentado de frangos descartados por estarem supostamente fora do padrão da JBS.
Originalmente, os trabalhadores foram contratados por uma terceirizada, a MRJ Prestadora de Serviços. No entanto, a Inspeção do Trabalho classificou a unidade da JBS Aves de Passo Fundo (RS) como a principal responsável pelas infrações que caracterizariam o emprego de mão de obra escrava. Segundo os fiscais, o frigorífico seria o responsável por estabelecer os locais, cronogramas e horários da apanha do frango nas granjas.
Questionada especificamente sobre a avocação por parte do ministro Luiz Marinho, a JBS não se manifestou. Em nota emitida em setembro pela assessoria de imprensa, a empresa afirmou apenas que a Seara (marca do grupo empresarial) “suspendeu imediatamente o prestador de serviços em Passo Fundo, encerrou o contrato e bloqueou esta empresa assim que tomou conhecimento das denúncias”. O posicionamento informou ainda que “a companhia tem tolerância zero com violações de práticas trabalhistas e de direitos humanos”.
“A Seara verificou in loco as condições de trabalho, constatando o regular cumprimento da legislação em vigor. Todos os fornecedores estão submetidos aos nossos Código de Conduta de Parceiros e à nossa Política Global de Direitos Humanos, que veda explicitamente qualquer prática de trabalho como as descritas na denúncia”, conclui.
Marinho também evitou inclusão de Santa Colomba na Lista Suja
Produtora de grãos, algodão, café, cacau e tabaco no oeste baiano, a Santa Colomba Agropecuária foi fiscalizada por auditores fiscais do Trabalho, integrantes do MPT (Ministério Público do Trabalho), da Defensoria Pública da União, acompanhados de agentes da Polícia Rodoviária Federal em novembro de 2023.
A fiscalização aconteceu após um homem denunciar tortura à polícia. Ele diz ter sido despido, algemado e agredido por seguranças da Fazenda Karitel, em Cocos (BA), pólo de produção da empresa.
Após a inspeção no local e análise de documentos, como inquérito policial e laudo do exame de lesões corporais, a equipe técnica do MTE autuou a empresa pela submissão do trabalhador a condições degradantes.
À reportagem, a Santa Colomba afirmou acompanhar o processo administrativo no MTE e destacou que “decisões sobre o mesmo episódio tomadas pelo Ministério Público do Trabalho e pela Justiça do Trabalho, bem como as conclusões das investigações da Polícia Civil, comprovam que o caso não diz respeito a práticas de trabalho análogo à escravidão”. A empresa reafirmou seu “compromisso absoluto com direitos humanos, sustentabilidade e responsabilidade social” e disse que o caso foi uma “ocorrência pontual envolvendo um funcionário terceirizado e um trabalhador”. A resposta completa da Santa Colomba pode ser lida aqui.
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