‘Queremos igualdade’: pescadoras cobram na COP30 lei para equiparar direitos

Brasil tem cerca de 1 milhão de mulheres registradas pelo governo como pescadoras profissionais. “Quando fui pedir minha aposentadoria, levei meus documentos e me disseram que eu não tinha direito porque era só ‘auxiliar’”, diz uma profissional
Por Vinicius Konchinski

CÉLIA Regina Neves, a Mana Célia, tem 69 anos, todos eles vividos na área do que hoje é a Reserva Extrativista Marinha Mãe Grande de Curuçá, a cerca de 150 km de Belém (PA). Ela passou praticamente a vida toda pescando no Furo Maripanema, braço do Oceano Atlântico que adentra o território paraense. Desde o último dia 10, porém, está hospedada na casa de uma sobrinha na capital por conta da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas.

Célia vai à COP30 quase todos os dias. Membro do CNPCT (Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais), ela tem engrossado o coro por proteção aos oceanos, foco da conferência no Brasil. Também vem aproveitando o evento para pressionar autoridades brasileiras pela aprovação do Projeto de Lei 4.789/2024. Em tramitação no Senado, o texto estende às pescadoras brasileiras os mesmos direitos reservados aos homens.

“O que a gente quer é igualdade”, afirma, em entrevista à Repórter Brasil. “Nenhuma pescadora quer ser ‘ajudante de pescador’. Ninguém quer estar vinculada a homem”, resume.

“Nenhuma pescadora quer ser ‘ajudante de pescador’. Ninguém quer estar vinculada a homem”, afirma Celia Regina Neves, sobre a dificuldade de acesso a direitos garantidos apenas a pescadores (Foto: Arquivo Pessoal)
Celia Regina Neves está na COP30 para defender nova legislação para trabalho na pesca que reconheça direito para mulheres (Foto: Arquivo Pessoal)

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“Eu pesquei minha vida inteira, mas não sou aposentada”, acrescenta Marly Lucia da Silva Ferreira, 60 anos, outra pescadora que tem comparecido à COP para reivindicar direitos para ela e suas colegas de trabalho. “Quando fui pedir minha aposentadoria, levei meus documentos e me disseram que eu não tinha direito porque era só ‘auxiliar’”, explica.

Marly vive na Reserva Extrativista Marinha de Caeté-Taperaçu, no município de Bragança (PA), a 215 km de Belém. Segundo ela, na reserva e no Brasil afora são inúmeras as histórias de mulheres pescadoras que não conseguem se aposentar por não terem seu trabalho reconhecido pelo governo federal.

Até a década de 1980, só homens podiam participar de colônias de pescadores criadas pela Capitania dos Portos. Isso mudou com a Constituição de 1988. A partir de 2014, entretanto, novas regras voltaram a dificultar o acesso de pescadoras ao chamado “seguro defeso” — o benefício previdenciário pago pelo INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) a profissionais da pesca na época em que a atividade é proibida para proteger a reprodução dos peixes.

“É como se a marisqueira, a catadora de sururu, de caranguejo fosse uma auxiliar. Como se só o homem que vai para o alto mar fosse pescador”, reclama Mana Célia. “A pesca depende da isca, da limpeza do peixe. Todo mundo sabe disso. Mas tem trabalho que é geralmente feito pela mulher. Justamente ele não é reconhecido”, acrescenta.

Comunidade centenária de pescadores teme que a chegada de torres eólicas ao seu mar comprometa modo de vida tradicional (Foto: Mariana Greif/Repórter Brasil)
“A pesca depende da isca, da limpeza do peixe. Todo mundo sabe disso. Mas tem trabalho que é geralmente feito pela mulher. Justamente ele não é reconhecido”, diz Mana Célia, ativista na COP30 (Foto: Mariana Greif/Repórter Brasil)

Pescadoras se mobilizam na COP30 por nova lei

Pescadores e pescadoras do Brasil estão mobilizados desde 2022 para a elaboração de uma nova Lei da Pesca. Atualmente, a legislação que rege a atividade é a 11.959, de 2009. Os trabalhadores elaboraram junto com organizações não-governamentais um projeto para modificá-la.

A proposta é o PL 4.789/2024, apresentado no Senado pelo senador Alessandro Vieira (MDB-SE), há quase um ano. Em seu artigo 3º, o projeto defende o reconhecimento do “papel desempenhado pelas mulheres pescadoras profissionais artesanais nas diversas etapas da cadeia produtiva da pesca, de seus conhecimentos e práticas tradicionais, como forma de assegurar direitos, eliminar a discriminação de gênero e possibilitar um maior alcance das políticas públicas da pesca para as mulheres”.

Em julho, o projeto foi aprovado pela Comissão de Agricultura e Reforma Agrária e seguiu para a Comissão de Meio Ambiente. Desde outubro, depende da realização de uma audiência pública para que possa avançar.

Na quarta (19), uma mesa de debate promovida pela organização ambiental Oceana, na Casa Voz dos Oceanos, em Belém, reuniu pescadoras para pressionar pelo avanço da proposta. “Falta vontade do governo federal para que isso vire lei”, disse Mana Célia. “O ministro da Pesca [André de Paula, do PSD] está mais interessado em ajudar o agro, promovendo a aquicultura, do que em ajudar os pescadores.”

Pesca artesanal da tainha na praia do Sossego, na Baía de Guanabara. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Pescadores e pescadoras do Brasil estão mobilizados desde 2022 para a elaboração de uma nova Lei da Pesca (Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

Procurado pela Repórter Brasil, o MPA (Ministério da Pesca e Aquicultura) não se pronunciou sobre o PL 4.789/2024. O Ministério da Previdência foi questionado sobre a aposentadoria de mulheres pescadoras e sobre o PL. Informou que não comentaria o assunto alegando que o “debate sobre projetos de lei em tramitação cabe ao Poder Legislativo”. O INSS não forneceu dados sobre a aposentadoria de mulheres pescadoras.

Governo quer usar pesca como antídoto contra emissões de gases de efeito estufa

Por conta da COP30, o ministro André de Paula escreveu, junto com Salvador Malheiro, secretário de Pesca de Portugal, um artigo apontando a pesca como fonte de alimentos com baixa pegada de carbono. 

Segundo os dois, os pescados são “alimentos azuis”, pois têm potencial para atender à crescente demanda humana por proteínas animais, emitindo pequena quantidade de gases causadores do efeito estufa em comparação com a pecuária.

“Estudos apontam que, com o aumento do consumo de alimentos azuis, as emissões globais de CO₂ poderiam ser reduzidas em até 1 gigatonelada por ano até 2050, o equivalente a três milhões de voos transatlânticos de ida e volta”, diz o texto.

“O oceano produz mais da metade do nosso oxigênio e absorve 90% do calor excedente das nossas emissões”, diz Marinez Scherer, enviada especial para oceanos na COP30 (Foto: Rcuri17/Wiki)
“O oceano produz mais da metade do nosso oxigênio e absorve 90% do calor excedente das nossas emissões”, diz Marinez Scherer, enviada especial para oceanos na COP30 (Foto: Rcuri17/Wiki)

“O termo ‘alimentos azuis’ abrange a pesca e a aquicultura de peixes, moluscos, algas e outros organismos aquáticos. Além de serem ricos em proteínas e micronutrientes essenciais, esses alimentos desempenham papel crucial no combate à desnutrição, que ainda afeta mais de 2 bilhões de pessoas no mundo.”

O oceanógrafo Martin Dias, diretor científico da Oceana, ratifica os argumentos do ministro. Segundo ele, se feita de forma equilibrada, o dano ambiental causado pela pesca é “somente o da poluição do motor do barco”. “A produção da proteína bovina, por outro lado, depende de pasto, que fica num terreno que um dia já foi floresta”, compara.

Mudanças climáticas ameaçam oceanos e atividade pesqueira

Dias ressalta que a pesca depende de um oceano saudável. O aquecimento global, portanto, é um risco à atividade. “Algumas espécies de peixes vivem em correntes frias do mar. Se as temperaturas global e a do oceano aumentarem, teremos uma migração de espécies para áreas mais geladas e uma perda de peixes em determinadas regiões”, alerta. Segundo ele, isso já acontece com a merluza, pescado popular no Brasil.

O oceanógrafo explica ainda que, em casos extremos, o aquecimento da água pode causar o colapso da cadeia de reprodução de certos tipos de peixes. De acordo com Dias, já está amplamente registrado na literatura científica que o aumento da temperatura do oceano Pacífico causado pelo fenômeno El Niño, quando extremado, reduz consideravelmente a presença de sardinhas na costa atlântica brasileira. “Se os El Niños se tornarem cada vez mais frequentes e potentes, isso pode ser uma ameaça à espécie”, acrescenta.

Um artigo publicado na revista Nature, em 2020, prevê que as mudanças climáticas podem reduzir em 40% a pesca nas regiões tropicais nos próximos 30 anos. Já estudos da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) divulgados em outubro indicam que o aquecimento global torna os microplásticos ainda mais perigosos para a vida aquática. 

O plástico representa 85% de todo lixo que chega aos oceanos Pelo menos 10 milhões de toneladas do material param nos mares todo ano, segundo o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Foto: Reprodução/Parlamento Europeu)
O plástico representa 85% de todo lixo que chega aos oceanos Pelo menos 10 milhões de toneladas do material param nos mares todo ano, segundo o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Foto: Reprodução/Parlamento Europeu)

“No meio aquático, essas partículas não estão sozinhas e podem se combinar a poluentes químicos, sofrer alterações pela radiação solar, além de interagir com variações de temperatura. Esses fatores combinados podem gerar efeitos mais severos para a fauna aquática”, explica Vera Castro, pesquisadora da Embrapa Meio Ambiente.

Marly diz que as mudanças climáticas também tornam as marés mais fortes, afetando os mangues, áreas de reprodução de pescados. Segundo ela, o efeito disso já é sentido por pescadores. “A escassez de peixes é cada vez maior”, lamenta.

COP30 tem foco inédito em oceanos

Neste ano, a conferência sobre clima da ONU tem os oceanos com um dos centros das discussões climáticas globais, por conta de sua capacidade de conter o aquecimento global. Os mares cobrem mais de 70% da superfície do planeta e são responsáveis pela absorção de cerca de 30% do carbono liberado na atmosfera, mas até aqui ocupavam um papel secundário nas negociações sobre o aquecimento global.

A inclusão dos oceanos na pauta da COP pode impactar diretamente 1,6 milhão de pescadores brasileiros. Esse é o número de pessoas que vivem da pesca nas regiões costeiras do país, segundo o RGP (Registro Geral da Atividade Pesqueira) do MPA.

De acordo com os dados oficiais, metade dos pescadores brasileiros são mulheres, e 99,7% praticam a pesca artesanal, ou seja, utilizam pequenas embarcações e técnicas tradicionais para a captura de peixes, camarões e outros pescados.

Segundo a Oceana, em 2022, a pesca produziu 90 milhões de toneladas de pescado no mundo. O Brasil contribuiu com 351 mil toneladas, sendo 56,3% provenientes da pesca artesanal. Além disso, as pescas marinha e continental brasileiras contribuíram com cerca de R$ 1,3 bilhão em exportações em 2024.

Os principais pescados exportados pelo país são a lagosta, capturada exclusivamente pela pesca artesanal na região Nordeste, e o pargo, proveniente da pesca industrial da região Norte. Nos últimos 10 anos, somente essas duas cadeias produtivas exportaram cerca de 71 mil toneladas de produtos, gerando um faturamento de R$ 6,3 bilhões.

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