Quatro trabalhadores rurais ajuizaram ações individuais na Justiça do Trabalho contra a Volkswagen do Brasil, afirmando terem sido submetidos a trabalho escravo durante a ditadura militar na “Fazenda Volkswagen”, em Santana do Araguaia (PA), no Sul do Pará.
Entre as décadas de 1970 e 1980, a montadora alemã era a principal sócia da Companhia Vale do Rio Cristalino (CVRC), empresa responsável pela fazenda de 139 mil hectares comprada com apoio do governo militar. A propriedade, na qual foram investidos cerca de R$ 500 milhões (em valores atuais), era dedicada à extração de madeira e à criação de gado, e tinha o Brasil e a Europa como principais destinos comerciais.
As ações defendem a tese de que a submissão de trabalhador a trabalho escravo é um crime imprescritível, segundo a jurisprudência do TST (Tribunal Superior do Trabalho) e da Corte Interamericana de Direitos Humanos. As ações requerem ainda indenização de R$ 2 milhões por trabalhador — metade por danos morais e metade por dano existencial.
Em agosto, a Volkswagen foi condenada pela Vara do Trabalho de Redenção (PA) ao pagamento de uma indenização de R$ 165 milhões por danos morais coletivos pelos episódios ocorridos na fazenda Vale do Rio Cristalino, em outra ação, protocolada pelo MPT (Ministério Público do Trabalho). A empresa recorreu da sentença e aguarda análise do Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região.
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As ações individuais movidas pelos trabalhadores rurais também correm na Vara do Trabalho de Redenção (PA), “com tramitação prioritária reconhecida pela Justiça em razão da idade avançada das vítimas e da gravidade da matéria, considerada violação de direitos humanos”, segundo nota do Coletivo Veredas, organização de advocacia popular responsável pelos pedidos. A primeira audiência está marcada para março de 2026.
As ações descrevem um sistema de servidão por dívida, em que os trabalhadores teriam sido aliciados por “gatos” (intermediários) com promessas de bons salários para derrubada de mata, montagem do pasto e obras internas.
Ao chegarem à propriedade, os trabalhadores teriam sido informados de que o custo da viagem e um suposto adiantamento haviam se convertido em dívidas. Tudo o que consumiam — de alimentos a ferramentas e roupas de trabalho — precisaria ser comprado a preços abusivos na cantina controlada pelos próprios aliciadores,, o que fazia a dívida aumentar.
Os trabalhadores alegam ainda que eram impedidos de sair da fazenda por conta das dívidas crescentes, mesmo quando enfrentavam problemas de saúde, como a malária. Também afirmam terem sido vigiados constantemente por pistoleiros a serviço de “gatos”, como são conhecidos os intermediários responsáveis pelo recrutamento de mão de obra.
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No decorrer do processo ajuizado pelo MPT, a Volkswagen argumentou que não contratou os trabalhadores escravizados e que não mantinha relações formais com os intermediários. Durante a audiência de instrução ocorrida em Redenção no final de maio, o representante da empresa afirmou que “a Volkswagen apurou todas as denúncias de irregularidades, mas não foram identificadas e confirmadas”. A montadora destacou ainda que investigações foram feitas na época pela Polícia Civil do Pará, sem responsabilização da empresa.
Questionada pela Repórter Brasil sobre as ações individuais movidas pelos trabalhadores, a Volkswagen afirmou que “seguirá em busca de segurança jurídica no Judiciário Brasileiro”. “Com um legado de 72 anos, a empresa defende consistentemente os princípios da dignidade humana e cumpre rigorosamente todas as leis e regulamentos trabalhistas aplicáveis. A Volkswagen reafirma seu compromisso inabalável com a responsabilidade social, que está intrinsecamente ligada à sua conduta como pessoa jurídica e empregadora”, diz a nota enviada à reportagem.
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Trabalhador alega ter sido escravizado e vendido quando atuava na ‘Fazenda Volkswagen’
Um dos trabalhadores que está processando a Volkswagen é Raul Batista de Souza, de 66 anos. Ele trabalhou na fazenda por alguns meses em 1986, ano em que a montadora vendeu sua fatia na propriedade. Segundo ele, um grupo de lavradores trazidos do Tocantins teria sido levado por gatos para outra fazenda da região. Quando terminaram o serviço, descobriram que estavam endividados e que haviam sido vendidos.
“Foram uns quatro ou cinco acertos, e o ‘gato’ dizendo que nós tava devendo. Quando a gente falou que ia embora, ele falou: ‘Vocês não vai não, só vão quando vocês me pagar o dinheiro que eu comprei vocês’. Aí foi que nós veio a saber que tava vendido”, disse ele à Repórter Brasil, em entrevista feita em maio.
Procurado novamente pela reportagem, ele não quis tratar da nova ação. Comentou apenas o fato de a montadora ter negado a responsabilidade durante o processo do MPT. “Não era o filho deles que ficou na situação que nós ficou, Se não, teriam uma outra posição”, disse.
As denúncias sobre violência na fazenda foram feitas à época por parlamentares, sindicalistas e membros da igreja católica. Em 1984, telegramas enviados por deputados federais e estaduais ao Judiciário do Pará relatavam trabalhadores impedidos de sair da propriedade, além de crianças e adolescentes submetidos a trabalhos forçados em função de dívidas fraudulentas.
Agentes da CPT (Comissão Pastoral da Terra), que acompanhavam os casos desde os anos 1980, documentaram violações, articularam denúncias e afirmam ter presenciado episódios de recaptura de trabalhadores que tentaram fugir. Na época, contudo, ninguém foi responsabilizado.
Para o Coletivo Veredas, que atua na defesa dos trabalhadores, as ações individuais permitem reconstruir a memória de cada vítima e conectar a violência da ditadura às violações vivenciadas por trabalhadores rurais nos dias atuais.
Os advogados afirmam que a reparação precisa reconhecer não apenas o passado, mas também os impactos contemporâneos da violência laboral. “Vamos mostrar como as vítimas têm nome e rosto”, diz José Vargas, um dos advogados que assina as petições. “Eles não se sentiram ofendidos pelo que a Volkswagen fez lá atrás, mas pelo que continua fazendo, ao negar a sua responsabilidade. Quando a empresa nega, ela perpetua [a violação]”, afirma.
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