ELISABETH VITOR tem 59 anos e trabalha desde os oito em lavouras do sul de Minas Gerais. Plantou feijão, colheu cana-de-açúcar e, principalmente, café. Em mais de cinco décadas, contudo, só tem três registros na carteira de trabalho. Todos temporários.
“Eu nasci 78 anos depois da Lei Áurea, mas parece que a liberdade não chegou para mim”, reclama. “Trabalhei em troca de roupa velha nem sei quanto tempo. E preciso continuar trabalhando porque até agora não consegui aposentadoria nenhuma.”
Ela tem certeza de que já foi escravizada em atividades rurais no país, mas nunca chegou a ser resgatada por auditores-fiscais do MTE (Ministério do Trabalho e Emprego) . O conceito de “resgate” compreende não só o pagamento de direitos trabalhistas, mas também o encaminhamento para políticas públicas de assistência social.
Elizabeth não aparece nas estatísticas das 1.857 mulheres —69% delas negras (pretas ou pardas)— libertadas no meio rural entre 2003 e 2023, segundo dados oficiais do governo federal acessados por meio de LAI (Lei de Acesso à Informação) e sistematizados pelo Projeto Perfil Resgatado, da Repórter Brasil.
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O ambiente rural é de longe o que concentra o maior número de casos de mulheres submetidas a trabalho análogo ao de escravo, como define o artigo 149 do Código Penal. Ao longo de 21 anos, 83% das 2.244 resgatadas exerciam alguma atividade no campo.
Minas Gerais, terra de Elizabeth, é o estado com maior número de resgates de trabalhadoras rurais: 436 em 21 anos, o que corresponde a 23% do total.
“As atividades que envolvem trabalho análogo à escravidão geralmente envolvem também o tráfico de pessoas e a atração de migrantes para os ambientes de trabalho degradante. Os homens estão mais disponíveis para mudanças. Mas há mulheres se mudando também, que acabam escravizadas”, afirma o auditor fiscal Marcelo Gonçalves Campos, da Coordenação-geral de Fiscalização para a Erradicação do Trabalho Análogo à Escravidão e do Tráfico de Pessoas do MTE.
Dados da Contar (Confederação Nacional dos Trabalhadores Assalariados e Assalariadas Rurais) indicam que o Brasil tem cerca de 12 milhões de pessoas em atividade no campo. Cerca de 12% deles são mulheres. Na média dos 21 anos cobertos pelo Projeto Perfil Resgatado, menos de 7% dos trabalhadores rurais resgatados no meio rural brasileiro são do sexo feminino.

“No caso das mulheres, o trabalho análogo à escravidão é ainda mais cruel”, analisa Lívia Miraglia, advogada e coordenadora da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). “Isso porque pode envolver casos de assédio e até violência sexual”, complementa.
“Trabalhei muito tempo segurando o xixi para não precisar ir ao banheiro porque não me sentia segura”, confirma Elizabeth. “Tem mulher que evita tomar água para não correr o risco de ser violentada ao ir em um banheiro compartilhado com homens.”
Pecuária lidera casos
A pecuária concentra 21% dos casos de trabalho escravo feminino no Brasil, considerando tanto os resgates feitos no meio rural quanto os no meio urbano. São 471 casos em 21 anos. Miraglia diz que esse dado indica que trabalhadoras do sexo feminino são escravizadas exercendo os mais diversos tipos de atividade, inclusive aquelas que tradicionalmente seriam feitas só por homens. “Tem muita mulher tocando boi Brasil afora”, exemplifica.
Para a professora, os resgates nesse ramo de atividade revelam também um traço típico: a mulher que vai acompanhar o marido no trabalho e acaba escravizada. “Tem mulher resgatada em fazenda cozinhando para trabalhadores, limpando alojamento ou cuidando de criança sem receber nada por isso. E depois dessa jornada ainda tem que cuidar dos afazeres familiares”, explica.

Antonio Carlos Avancini, auditor que fiscaliza o trabalho rural há mais de 20 anos, acrescenta que em fazendas de gado do Pará e Tocantins foram encontradas mulheres roçando palmeiras do tipo juquira de áreas de pasto recém-desmatadas. “É um trabalho árduo, bruto, e que mulheres faziam sem nem receber por isso”, conta.
A Repórter Brasil procurou a CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil) para comentar os casos de trabalho em fazendas de pecuária nacional. Até o fechamento desta reportagem, a entidade não havia respondido. O texto será atualizado se um posicionamento for recebido.

Mão de obra feminina é bastante demandada na colheita de café
A produção de café é a segunda atividade rural que mais escraviza mulheres. Foram 372 casos de 2003 a 2023, 17% de todos os resgates realizados.
Avancini conta que, em plantações de café, o trabalho feminino é historicamente comum. “A plantação de café geralmente ocorre em morros, áreas em que as máquinas não entram”, explica. “A colheita é feita por frentes de trabalho manuais, com muitas mulheres.”
Segundo o auditor, é comum encontrar fazendas de café com a mesma quantidade de homens e mulheres no quadro de funcionários.
“Há fazendas em que está sendo feita a colheita de ‘café novo’, de pés mais jovens, em que o fazendeiro prefere contratar mulheres porque elas seriam mais delicadas”, confirma Miraglia, que já atendeu várias mulheres resgatadas desse tipo de lavoura.
Em nota, a Abic (Associação Brasileira da Indústria de Café) declara que “repudia veementemente toda e qualquer forma de supressão e/ou violação dos direitos humanos”. A entidade informa também que trabalha com suas associadas para fomentar boas práticas no campo e erradicar o trabalho escravo, promovendo concursos e concedendo selos de sustentabilidade a produtores.
“A Associação conta com discussões perenes e compromissos firmados com outras entidades parceiras, como a Plataforma Global (CGP) do Café, ação conduzida pelo Instituto Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo (InPACTO), no processo de construção coletiva do pacto setorial pela sustentabilidade social do café”, acrescenta o posicionamento. Leia aqui a íntegra.
Também em nota, o Cecafé (Conselho dos Exportadores de Café do Brasil) afirma ter “tolerância zero” para violações de direitos humanos. “Fornecedores incluídos na Lista Suja do trabalho análogo ao de escravo são bloqueados automaticamente da cadeia de fornecimento, e o monitoramento desse critério é realizado diariamente”, explica o posicionamento.
“A transparência com que o Brasil enfrenta seus problemas sociais deve ser valorizada, e não servir de base para generalizações indevidas que penalizem todo um setor”, continua a nota. Leia aqui a íntegra.

Carvão vegetal
A produção de carvão vegetal, usualmente utilizada na alimentação de fornos de siderúrgicas, é o terceiro segmento no meio rural que mais escraviza trabalhadoras. Foram 199 em 21 anos, o que representa 9% do total de resgates.“Ali a gente tem um problema histórico de precarização”, diz Lívia Miraglia .
Em Minas Gerais, estado que lidera o número de mulheres resgatadas ao longo de duas décadas, abastece sobretudo as usinas produtoras de ferro-gusa, matéria-prima do aço.
A Associação Mineira da Indústria Florestal (Amif), representante de produtoras de carvão vegetal no estado, reconhece a existência de empresas atuando à margem da legislação trabalhista, tributária e ambiental.
Uma fonte da associação ouvido pela reportagem argumenta, no entanto, que elas são exceção e que as práticas de concorrência desleal são condenadas pelas demais companhias do setor.
A Amif informa ainda manter contato com o Ministério Público do Trabalho para coibir práticas ilegais e afirma que já editou uma cartilha sobre boas práticas trabalhistas.

Cana-de-açúcar é quarta maior escravizadora rural
A produção de cana-de-açúcar é a quarta atividade rural com mais mulheres resgatadas de trabalho análogo à escravidão no país. Foram 157, ou 7% do total.
O auditor fiscal Marcelo Campos diz que, em lavouras da cultura, o trabalho é majoritariamente masculino. Mas ainda assim é possível ver mulheres exercendo as mesmas atividades de homens.
Miraglia conta que, em fazendas mecanizadas, mulheres geralmente atuam no corte da “bituca” da cana – parte do caule que não é alcançada por colheitadeiras mecânicas.
Procurada, a Unica (União da Indústria de Cana-de-Açúcar e Bioenergiaa) não se pronunciou sobre os casos de trabalho escravo no setor. Já a Orplana (Organização de Associações de Produtores de Cana do Brasil) informa em nota que repudia qualquer violação de direitos fundamentais de trabalhadores.
A entidade acrescenta que não tem conhecimento de casos de trabalho escravo entre seus associados e que orienta a denunciar casos de ilegalidades. “Como representante de mais de 12 mil produtores, a Orplana atua para promover relações de trabalho responsáveis e a integridade de toda a cadeia produtiva da cana-de-açúcar”, diz o texto. Leia aqui a íntegra.

Realidade subdimensionada
Maria Samara de Souza, secretária de Gênero e Geração da Contar, vê o trabalho escravo entre mulheres no meio rural minimizado e subdimensionado.
Segundo ela, por envolver também atividades de cuidado, há trabalhadoras escravizadas como cozinheiras, por exemplo, que durante as fiscalizações no meio rural acabam não sendo resgatadas, deixando de receber pagamento e encaminhamento para políticas de assistência social.
“Na hora do resgate, a mulher simplesmente não é considerada escravizada. Se não está no campo, não é resgatada”, conta. “Isso, além de mantê-la em condição degradante, ainda reduz estatisticamente o tamanho do problema.”
A secretária da Contar acrescenta que muitas mulheres escravizadas sequer sabem que estão sendo vítimas de um crime. Por falta de informação, simplesmente não reivindicam seus direitos nem denunciam abusos de empregadores.
A dirigente sindical diz que a Contar vem promovendo campanhas de conscientização no meio rural para proteger as trabalhadoras.
Marcelo Campos, da coordenação de fiscalização do MTE, discorda da avaliação de que existem casos sistemáticos de subnotificação de trabalho escravo feminino e afirma que as equipes de inspeção já estão preparadas para identificar irregularidades em todas as atividades exercidas, incluindo as desempenhadas pelas mulheres.
Em entrevista à Repórter Brasil publicada por ocasião do Dia Internacional da Mulher deste ano, Tatiana Bivar — procuradora do Ministério Público do Trabalho — afirmou que as políticas públicas de combate ao trabalho escravo vêm passando por um “processo de transformação” para levar em conta questões de gênero.
“Nos últimos anos, inclusive, começamos a identificar a necessidade de termos mulheres nas equipes de agentes também, inclusive na força policial, especialmente se é um caso que envolve exploração sexual ou trabalho doméstico”, disse a procuradora.
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