A JUSTIÇA FEDERAL ordenou que a Via Brasil — concessionária responsável pela administração da BR-163 no trecho entre Sinop (MT) e Itaituba (PA) — restabeleça pagamentos devidos aos povos Kayapó e Panará. Suspensas de forma unilateral pela empresa, as transferências compõem o pacote de compensações socioambientais assumido pela concessionária para reduzir os impactos da “rodovia da soja” sobre territórios indígenas e unidades de conservação na Amazônia.
“Estamos muito afetados. Os fazendeiros estão encostando na terra indígena, madeireiros e pecuaristas entraram sem avisar. Nós precisamos monitorar nossa terra”, alerta Pysy Panará, presidente da Associação Iakiô, sobre os impactos causados pelo corte de verbas.
A decisão judicial foi tomada no âmbito de uma ação aberta em 2020 por MPF (Ministério Público Federal), Instituto Kabu (povo Kayapó das Terras Indígenas Menkragnoti e Baú) e Associação Iakiô (povo Panará), a fim de discutir o plano de mitigação dos danos causados pela via.
Ao assumir a concessão em 2022, a Via Brasil herdou a obrigação de executar o PBA-CI (Plano Básico Ambiental – Componente Indígena), exigido pela legislação brasileira. Até hoje, porém, a Via Brasil não apresentou a renovação do plano, prometido apenas para março de 2026.
Enquanto isso, a concessionária operava com medidas emergenciais, como os repasses mensais às organizações indígenas. Os pagamentos, no entanto, foram interrompidos em julho de 2025, quando bloqueou cartões de combustível, entre outros repasses, segundo denúncias das associações.
Para o juiz federal Pablo Kipper Aguilar, a suspensão representa um “descumprimento contratual puro e simples”, feita sem qualquer aviso às comunidades, o que viola a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho). A convenção, da qual o Brasil é signatário, determina a consulta às comunidades sobre medidas com potencial de afetá-las.
Na decisão, proferida em 28 de agosto, o juiz afirmou que, sem os pagamentos, as comunidades indígenas viveriam um hiato de medidas mitigatórias até a renovação do PBA-CI, “cuja previsão do início é março de 2026, já havendo movimentos concretos que sugerem procrastinação desse calendário”.
O magistrado determinou que a Via Brasil quitasse todos os repasses pendentes, prorrogasse as medidas emergenciais em um terceiro ciclo e depositasse R$ 6,3 milhões para a Associação Iakiô e R$ 7,3 milhões para o Instituto Kabu. O prazo para comprovar os depósitos termina em 5 de setembro. Em caso de descumprimento, a multa diária é de R$ 100 mil.
Até o fechamento desta reportagem, lideranças indígenas informaram que nenhum valor havia sido transferido.
Empresa acusa Panarás de apreender equipamentos
Após a decisão judicial, a Via Brasil justificou nos autos que paralisou os pagamentos pela necessidade de realizar um balanço financeiro. Além disso, acusou os Panará de terem retido equipamentos de forma ilegal.
A empresa também afirmou que os pagamentos estavam sendo feito como medida emergencial e que não são obrigatórios mais pagamentos, tendo em vista que o PBA-CI (Plano Básico Ambiental – Componente Indígena) deverá ser executado nos próximos meses.
A Associação Iakiô explicou que a retenção foi um protesto de associados diante da suspensão abrupta de pagamentos, e que os maquinários foram devolvidos antes mesmo da ação de reintegração movida pela concessionária. A entidade ainda acusou a Via Brasil de “litigância de má-fé”.
A Repórter Brasil procurou a concessionária, mas não obteve resposta até a publicação da reportagem.
De acordo com os indígenas, as medidas de compensação são falhas desde 2019, quando o Dnit suspendeu os repasses após dez anos de execução. Desde então, MPF, Instituto Kabu e Associação Iakiô acionaram o órgão federal na Justiça, além de Funai, Ibama e, mais recentemente, a Via Brasil.
Para as comunidades, a demora na renovação do PBA-CI compromete diretamente a sobrevivência, pois os recursos são usados para vigilância territorial, manutenção de ramais, combustível, apoio a projetos culturais e geração de renda.
As organizações também pediram a criação de fundos emergenciais de longo prazo — R$ 10 milhões solicitados pela Iakiô e R$ 20 milhões pelo Instituto Kabu — para evitar que paralisações futuras deixem as aldeias sem apoio. O juiz adiou essa decisão para a sentença final.

BR-163: da violência à rodovia da soja
A construção da BR-163, empreendida pelo governo militar nos anos 1970, foi desastrosa para os povos indígenas. O contato forçado e a remoção violenta do povo Panará reduziram sua população de cerca de 600 pessoas a apenas 78 em 1975, devido a doenças como gripe e diarreia, além de impactos sociais, como alcoolismo e prostituição. Eles só retornaram ao território na década de 1990, e a regularização da Terra Indígena Panará só ocorreu em 2001.
Com a expansão do agronegócio sobre a Amazônia, a BR-163 passou a ser conhecida como “rodovia da soja”, conectando a zona graneleira do norte de Mato Grosso até os portos de Miritituba, distrito de Itaituba, às margens do rio Tapajós. Ali estão os portos controlados pelas multinacionais que embarcam os grãos para exportação, principalmente para China, Europa e Oriente Médio.
O asfaltamento da rodovia, a partir de 2013, intensificou ainda mais a opção pela monocultura no entorno, aumentando ainda mais o fluxo de caminhões. Estima-se que Miritituba receba 1.500 caminhões por dia no auge da safra. Moradores relatam também alta no número de acidentes e pressões fundiárias, que têm levado à substituição de outras culturas pela soja.
O corredor de exportação também acelerou o desmatamento e a grilagem, tornando a região um dos maiores focos de destruição da Amazônia. Foi em Novo Progresso (PA), cidade cortada pela estrada, o epicentro do “Dia do Fogo”, em 2019, quando fazendeiros organizaram queimadas em massa. Só em 2024, mais de 1 milhão de hectares foram devastados por incêndios na região.
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