TODO FIM DE TARDE, antes de a luz do sol ir embora, dezenas de sem-terra se reúnem em um barracão de lona para orar no acampamento erguido na beira de uma estrada de terra, em Novo Mundo (MT). Mulheres, homens e crianças juntam as mãos e pedem que uma decisão judicial já tomada seja cumprida.
“A gente clama todo dia para Deus tocar no coração desse homem”, diz Edna Lima do Nascimento Santos, 49 anos, que vive com a filha, três netos e um bisneto.
O homem a quem ela se refere é o desembargador Flávio Jardim, do TRF-1 (Tribunal Regional Federal da 1ª Região). Em 23 de abril, o magistrado pediu vista, interrompendo o julgamento de um recurso de produtores rurais que se apresentam como donos da Fazenda Cinco Estrelas e tentam evitar a destinação da propriedade para a reforma agrária. Desde então, o processo segue parado por mais de quatro meses, além do limite de 20 dias recomendado pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça) para a devolução de processos com pedido de vista.
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A 1ª Vara Federal de Sinop reconheceu há quatro anos que os 4.354 hectares da Cinco Estrelas pertencem na verdade à União, e determinou a destinação de 2 mil hectares para reforma agrária. Em 2003, uma fiscalização do governo federal resgatou 140 pessoas de condições análogas às de escravo na fazenda.
O Incra já elaborou um plano para assentar as famílias, mas até agora nada saiu do papel. A autarquia afirma tratar a área como prioritária e condiciona a execução à decisão judicial.

Na segunda instância, dois desembargadores já votaram e formaram maioria a favor da União e do Incra, restando apenas o voto de Flávio Jardim para a conclusão do julgamento. A paralisação é alvo de pressão de diversas instituições: a Advocacia-Geral da União, o Incra e a Defensoria Pública de Mato Grosso e o Conselho Estadual de Direitos Humanos pediram despacho com o magistrado para que liberasse o processo.
O que diz o desembargador
Procurado, o magistrado afirmou que o processo tramita há 16 anos e “envolve tema complexo”, o que demandaria mais tempo de análise do que outros casos. Embora a lei preveja prazo de 10 dias para a devolução de pedidos de vista, argumentou que a situação se enquadra em “exceções” reconhecidas pela jurisprudência, e informou que o julgamento será retomado em 8 de outubro de 2025.
Jardim destacou ainda que seu gabinete acumula mais de 10 mil processos conclusos, muitos deles sobre “questões extremamente sensíveis, como indígenas, quilombolas, acesso a medicamentos e tratamentos médicos”.
Indagado sobre o impacto da demora em um caso que envolve famílias em vulnerabilidade e fazendeiros com histórico de condenações, o desembargador disse que não poderia se manifestar publicamente, citando o artigo 36 da Lei Orgânica da Magistratura, que veda a juízes opinar sobre processos pendentes de julgamento.
Em nota, o CNJ diz que não se manifesta sobre decisões dos tribunais. “Também não se posiciona sobre casos que possam vir a ser questionados no âmbito deste Conselho”, acrescenta o texto. Leia aqui a íntegra dos posicionamentos.
Famílias sem terra caminham seis quilômetros para conseguir água potável
Enquanto o desembargador analisa o caso, o dia a dia no acampamento segue com sofrimento. A água vem de caminhões-pipa da prefeitura, mas é imprópria para beber. Para conseguir água potável, famílias caminham seis quilômetros até sítios vizinhos. “Nós não vive, nós vegeta”, resume Edna.
Ela descreve a poeira que cobre os pratos durante as refeições, os redemoinhos que entram nos barracos, as baratas que vêm das fossas e cobras que aparecem no acampamento. Conta das noites mal dormidas e das crianças chorando sem parar no calor sufocante: “É muita agonia. O sol esquenta, a pressão baixa. A gente só pede a Deus para esse homem deixar de ter o coração duro e liberar [a destinação da fazenda para a reforma agrária]”.

“O desembargador está sentado em cima do processo e a gente não sabe o que tá acontecendo”, afirma outro acampado, incluído no programa de proteção a defensores de direitos humanos após receber ameaças de morte. Para os sem-terra, não se trata de escolha: “Se sair daqui, vamos pra onde? Vamos virar moradores de rua?”, questiona.
Flávio Jardim é desembargador desde 2024, quando foi escolhido pelo presidente Lula (PT) para ocupar uma das vagas da corte destinada a advogados, com indicação pela OAB (Ordem dos Advogados do Brasil). Em dezembro, Jardim suspendeu a desintrusão [retirada de ocupantes irregulares] da Terra Indígena Urubu Branco, localizada no nordeste de Mato Grosso.
No despacho, citou uma decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes que, em abril daquele ano, havia determinado a paralisação de todos os processos sobre a constitucionalidade do chamado “Marco Temporal” — tese defendida por ruralistas que condiciona a demarcação de terras indígenas à presença de povos originários em áreas sob disputa na época da promulgação da Constituição de 1988. A medida foi contestada pela assessoria jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), que a classificou como um “equívoco”.
Fazenda já registrou um dos maiores casos de trabalho escravo do Mato Grosso
A história da Cinco Estrelas ajuda a entender a dimensão da disputa pela terra. Em 2003, uma fiscalização do Ministério do Trabalho encontrou um dos maiores casos de escravidão contemporânea já registrados em Mato Grosso.
Segundo os autos dos auditores fiscais, 140 pessoas estavam confinadas em barracos de lona e galpões improvisados, sem registro em carteira, sem salário e vigiadas por pistoleiros. Os trabalhadores eram usados em atividades ligadas à pecuária pelo então dono da fazenda, Sebastião Neves de Almeida, o “Chapéu Preto”.
A comida era escassa, a água vinha de córregos e uma dívida fraudulenta os impedia de sair, segundo relatório de fiscalização elaborado pelos auditores-fiscais do Trabalho. Ainda de acordo com as autoridades, pessoas que tentaram fugir teriam sido caçadas a pauladas e golpes de facão. Quatro trabalhadores foram escondidos em outra propriedade para evitar que depusessem à Polícia Federal.
O impacto da cena foi tamanho que o auditor-fiscal Raimundo Barbosa da Silva presente na operação, escreveu um poema. Intitulado “Um soneto com quinteto”, o texto faz um jogo de palavras com o nome do município – Novo Mundo – para denunciar velhas práticas de exploração:
“Novo mundo, velhas ações / Vi em ti a colônia de outrora / Do império, da escravidão”. Nas outras estrofes, o poema registra a dor silenciosa dos trabalhadores e projeta a esperança de que a juventude não tivesse que repetir a humilhação dos pais.

No ano seguinte, em 2004, Sebastião foi condenado pela Vara do Trabalho de Alta Floresta. A decisão fixou indenização de R$ 550 mil ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). A reportagem não conseguiu contato com os advogados que representaram Sebastião Neves de Almeida, o Chapéu Preto, já falecido.
Anos depois, a posse da Cinco Estrelas passou para Osmar Rodrigues da Cunha. Em 2010, quando foi abordado por um oficial de justiça na própria fazenda, Osmar declarou que a área teria sido adquirida por seus familiares com recursos da venda de outra fazenda, em São Félix do Xingu (PA).
Na ação judicial, a União contestou essa versão, sustentando que se tratava de fraude: não havia prova de pagamento ou de transferência regular de recursos entre as partes. Para os procuradores, a declaração formalizava a continuidade de uma ocupação irregular em terra pública.
Foi justamente na fazenda de São Félix do Xingu que Osmar havia sido responsabilizado, em 2005, por manter trabalhadores em condições análogas à escravidão. O episódio resultou na inclusão de seu nome na “lista suja”, cadastro federal com dados de empregadores flagrados por trabalho escravo.
No Mato Grosso, o Ministério Público Federal também denunciou Osmar por tentativa de homicídio de 26 sem-terras, após confronto em que vítimas relataram espancamentos brutais e ameaças de morte, em 2010.
Segundo a ação do MPF, uma delas afirma ter levado mais de 20 pauladas na cabeça e no corpo, supostamente desferidas por Osmar. Ainda segundo o relato, o fazendeiro teria violentado o trabalhador para que ele revelasse o nome do líder dos sem-terra. A denúncia foi remetida à Justiça Estadual, onde ainda tramita a ação penal, mas a punibilidade será extinta em razão da morte de Osmar, em setembro de 2023.
Os filhos e um sobrinho de Osmar seguem litigando contra a União na tentativa de manter a posse da Cinco Estrelas. Todos tiveram pedidos de regularização indeferidos pelo Incra. Em 2016, Clayton Rodrigues da Cunha, um dos filhos, foi multado em R$ 335 mil pelo Ibama por desmatamento ilegal de 66 hectares em outra área da Gleba Nhandu, onde fica a Fazenda Cinco Estrelas.
Em nota, o advogado de Cunha afirmou que seu pai “nunca foi proprietário de áreas no Mato Grosso” e que a denúncia de tentativa de homicídio de 2010 “foi arquivada por falta de provas”. Ele também declarou que a multa aplicada pelo Ibama por desmatamento ilegal já teria sido “defendida e arquivada”. Leia aqui a íntegra do posicionamento.
O texto nega ainda a ocorrência de trabalho escravo na fazenda de São Félix do Xingu, afirmando que “a alegação é infundada”. Na época, “os funcionários estavam registrados e tinham alojamento adequado”, diz a nota. Ainda segundo o posicionamento, a família ocupa a área da Fazenda Cinco Estrelas “há mais de 30 anos” e a propriedade seria produtiva, com “produção agrícola e pecuária”, incluindo a retirada diária de “3 mil a 3,5 mil litros de leite”.
Fazenda faz parte de gleba pública desde os anos 1970
A Cinco Estrelas fica dentro da Gleba Nhandu, área que integra o patrimônio da União desde 1977, quando o Incra formalizou a arrecadação com base no Decreto-Lei nº 1.164/71.
Esse decreto determinava que terras sem dono localizadas até cem quilômetros de rodovias federais seriam incorporadas ao patrimônio federal. O Estado de Mato Grosso reconheceu a titularidade da União, e o Incra reafirmou ao longo dos anos que a área deve ser usada para a reforma agrária.

Procurado, o Incra afirmou que já adotou todas as medidas possíveis para viabilizar o assentamento, mas que a execução depende da decisão judicial ainda pendente no TRF-1. Segundo o órgão, o processo tem sido tratado como prioritário, com petições e pedidos de inclusão em pauta para garantir a celeridade.
Sobre os pedidos de regularização fundiária feitos pela família de Osmar Rodrigues da Cunha, o Incra informou que todos foram indeferidos. A autarquia reforçou que a destinação da área é considerada prioritária em razão da demanda social e do histórico do caso.
Violência que persiste
Enquanto a Justiça não decide, a violência continua. Em abril de 2024, o acampado Claudinei Martelo foi assassinado após meses de ameaças de garimpeiros. No mês seguinte, uma operação da Polícia Militar prendeu a defensora pública Gabriela Beck e o padre Luís Cláudio da Silva, da Comissão Pastoral da Terra, durante despejo sem ordem judicial.
A defensora disse ter sido agredida por policiais militares e saiu com marcas no rosto e no pescoço. Trabalhadores denunciaram a apreensão de celulares, a proibição de retirar pertences e revistas feitas por agentes homens em mulheres.
Edinalva Lima Sampaio, de 37 anos, vive há oito anos acampada e descreve uma rotina de intimidações. Segundo ela, os guaxebas, como são chamados os seguranças privados contratados pelos fazendeiros, circulam diariamente em frente ao acampamento, muitas vezes mascarados, armados e tirando fotos das famílias. “Eles tampam o rosto igual bandido quando vai roubar banco, só dá para ver os olhos”, relata.
Ela vive com o marido, três filhos e um neto de cinco meses. Os filhos seguem para a escola em ônibus da prefeitura, e Edinalva conta que faz de tudo para que cheguem arrumados às aulas. “Tem gente em Novo Mundo que fica encabulada, sem entender, pois não tem água aqui, mas a gente manda eles limpinhos para não se sentirem vítimas de discriminação”, afirma.
Entre poeira, escassez de água, ameaças de pistoleiros mascarados e barracos espremidos, Edinalva resume o sentimento coletivo: “Só estamos esperando uma decisão. O Incra já reconheceu a área. Só falta a Justiça deixar a gente viver.” Seu sonho, reforça, é simples: plantar feijão, arroz e mandioca, criar animais e garantir um futuro melhor aos filhos.
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