Ação da Belo Sun pode expulsar mil moradores de 4 comunidades no Pará, diz Defensoria

Ordem de despejo obtida pela mineradora canadense Belo Sun tem como alvo principal trabalhadores sem terra acampados, mas Defensoria Pública Estadual afirma que a determinação inclui toda a área cedida pelo Incra à empresa, incluindo quatro comunidades locais
Por Igor Ojeda | Edição Diego Junqueira
 30/09/2025

“A GENTE TEM MEDO do pior acontecer a qualquer momento. Eu moro aqui há 37 anos, sou avô, sou pai, criei meus filhos aqui, mas hoje a gente se vê ameaçado.” 

A fala é de um dos moradores mais antigos da Vila Ressaca, comunidade do município de Senador José Porfírio (PA), na região do rio Xingu, que corre risco de despejo. Ele conversou com a Repórter Brasil sob a condição de não ser identificado.

O receio do morador atende pelo nome de Belo Sun. A mineradora canadense conseguiu na Justiça do Pará uma ordem de reintegração de posse para expulsar trabalhadores sem terra acampados, desde 2022, em uma área reivindicada pela empresa. O despejo, porém, pode causar também a remoção dos cerca de mil moradores de quatro comunidades locais, dentre elas a Vila Ressaca, segundo a DPE-PA (Defensoria Pública do Estado do Pará), que acompanha o caso.

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O órgão considera que a decisão judicial inclui toda a área cedida pelo Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) à mineradora em 2021, durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), e não apenas o local onde foi erguido o acampamento sem terra. Isso significa que o despejo pode afetar também moradores do PA (Projeto de Assentamento) Ressaca e residentes das quatro comunidades situadas em parte da gleba federal Ituna: Vila do Galo, Vila Ouro Verde e Itatá, além da Vila Ressaca.

“Mais de 50% das famílias da comunidade não têm para onde ir. Pai de família com cinco, seis filhos, vai ficar à deriva no meio do mundo. Não tem condição de alugar uma casa na cidade”, alerta o morador da Vila Ressaca.

Acordo foi declarado nulo pela Justiça Federal

A Belo Sun pretende implementar no local o Projeto Volta Grande, que pode se tornar a maior mina de ouro a céu aberto do Brasil. A região já sofre os efeitos da usina hidrelétrica de Belo Monte, em operação desde 2016, que alterou o curso e reduziu a vazão do rio Xingu, expulsou milhares de pessoas de suas casas, matou peixes, animais e flora locais, entre outros impactos.

Para viabilizar o plano, a mineradora fechou com o Incra em 2021 um acordo envolvendo 2.428 hectares de terras da União — 1.439 dentro do PA Ressaca e outros 989 sobrepostos à gleba federal Ituna —, cedidos à mineradora por meio de um contrato de concessão de uso. 

Acampados dentro do projeto de assentamento, os trabalhadores rurais reivindicam a revogação do contrato e o assentamento das famílias pelo governo federal. 

Arte: Rodrigo Bento/Repórter Brasil, com base em mapa elaborado pela Defensoria Pública do Estado do Pará. Fonte de dados: Incra; Sicar/PA
Arte: Rodrigo Bento/Repórter Brasil, com base em mapa elaborado pela Defensoria Pública do Estado do Pará. Fonte de dados: Incra; Sicar/PA

O acordo entre Belo Sun e Incra foi anulado em novembro de 2024 pela Justiça Federal em Altamira (PA), mas ainda cabe recurso. A decisão entendeu que o pacto engloba propriedades adquiridas ilegalmente pela empresa, em razão de seu perímetro se sobrepor ao território destinado à reforma agrária. Para a Justiça, a alteração da destinação da área para mineração não seguiu o procedimento adequado.

Em nota enviada à Repórter Brasil, a Belo Sun disse não concordar com a decisão judicial e que recorreu ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região. 

Já o Incra afirmou considerar que, ao contrário do entendimento da Justiça federal, o próprio contrato de concessão de uso formalizou a alteração da destinação da área para mineração. “Por esta razão, o Incra apresentou recurso de apelação em face da sentença, que será apreciada pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região”, diz o texto.

“De toda forma”, continuou a autarquia, “especialmente em relação à proteção territorial das áreas do PA Ressaca, o Incra atuará contra eventual tentativa ilícita de remoção das famílias, bem como vem atuando na mediação da situação envolvendo a área concedida, por meio da Câmara de Conciliação Agrária (CCA).” (Leia aqui as respostas na íntegra)

445 residências estariam ameaçadas

O processo de reintegração de posse havia sido adiado no último 8 de setembro após pedido do Ministério Público do Pará. No dia 18, a Justiça do estado decidiu retomá-lo

A área a ser reintegrada, no entanto, não é delimitada na petição inicial da Belo Sun nem na decisão judicial que determinou o despejo. “A área de abrangência desse contrato, portanto, da própria ação possessória, é ocupada por comunidades rurais que desenvolvem atividades agrárias, isto é, dezenas de famílias, que desenvolvem a atividade da pesca, agricultura e agroextrativismo”, escreveu a defensoria estadual em manifestação na ação de reintegração. 

De acordo com levantamento do Movimento Xingu Vivo, que reúne dezenas de organizações, a Belo Sun registrou a área no CAR (Cadastro Ambiental Rural, uma espécie de CPF de propriedades), mesmo sem ter a posse do local. Na área informada pela mineradora estão localizadas 445 residências, segundo o Censo 2022 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

“Mais de 50% das famílias da comunidade não têm para onde ir. Não tem condição de alugar uma casa na cidade”, alerta um morador da Vila Ressaca, ameaçada de despejo (Foto: Verena Glass/Movimento Xingu Vivo)
“Mais de 50% das famílias da comunidade não têm para onde ir. Não tem condição de alugar uma casa na cidade”, alerta um morador da Vila Ressaca, ameaçada de despejo (Foto: Verena Glass/Movimento Xingu Vivo)

“Queremos que a reintegração seja delimitada no máximo para uma área que abranja esse grupo de pessoas acampadas. Mas infelizmente a decisão do Tribunal de Justiça do Pará é no sentido de que a área toda vai ser reintegrada, o que é extremamente temerário”, diz o defensor público estadual João Paulo Fortes Perina.

A situação coloca em lados opostos diferentes setores do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, comandado pelo ministro Paulo Teixeira. Enquanto o Incra atua em prol do acordo com a Belo Sun, a Ouvidoria Agrária Nacional o critica e defende a suspensão da reintegração de posse. 

“O fato de o contrato de concessão ser questionado judicialmente é motivo suficiente para que a Justiça suspenda todos os processos de reintegração de posse envolvendo áreas que estão dentro do perímetro do acordo”, afirma Diego Diehl, coordenador geral de Planejamento Estratégico da ouvidoria.

Defensorias denunciam diversas irregularidades praticadas pela Belo Sun

A Defensoria Pública do Estado do Pará e a DPU (Defensoria Pública da União) ingressaram com diversas ações contra a Belo Sun nos últimos anos, apontando diferentes irregularidades, como compra ilegal de propriedades e coação de moradores.

Em 2013, a DPE entrou com ação civil pública contra o que considerou como compra ilegal de terras públicas pela Belo Sun, nas áreas onde ficam as vilas Ressaca, Galo e Ouro Verde. Já na época, a medida buscava evitar o despejo forçado dos moradores. A ação pedia também a retirada de placas afixadas pela empresa nas comunidades, que proibiam atividades como caça, pesca e extrativismo. 

Só em 2023 a Justiça determinou a retirada dos avisos e proibiu a remoção dos moradores. Para a Defensoria, no entanto, a mineradora agora utiliza o pedido de reintegração de posse contra os trabalhadores acampados no PA Ressaca para tentar despejar também os residentes dessas comunidades.

As restrições, contudo, permanecem. “Existem locais que as pessoas não podem mais nem passar, porque tem cancela fechada, tem segurança armado. Proíbem a gente de pescar e tirar açaí, como fazíamos antes”, conta o morador da Vila Ressaca.

Questionada pela Repórter Brasil, a mineradora não respondeu sobre as restrições nem sobre a acusação de que usaria a ordem de despejo contra os acampados para remover as comunidades próximas.

Um dos 14 mil pés de cacau cultivados por Diego Maciel Nogueira na propriedade vendida por seus pais à Belo Sun em 2015 (Foto: Arquivo pessoal/Reprodução)
Um dos 14 mil pés de cacau cultivados por Diego Maciel Nogueira na propriedade vendida por seus pais à Belo Sun em 2015 (Foto: Arquivo pessoal/Reprodução)

Já em 2022, a DPE e a DPU ingressaram com outra ação na qual afirmaram que a compra de terras destinadas à reforma agrária dentro do PA Ressaca não calculou o real valor das propriedades, ao desconsiderar “os valores de uso atribuídos às roças, plantas frutíferas, plantas medicinais, fontes de água, ar puro e áreas conservadas”. “As regras do jogo foram definidas previamente em favor da empresa bilionária que é, inequivocamente, a parte mais forte da avença [acordo]”, dizia a ação. 

Segundo o agricultor Diego Maciel Nogueira, foi o que aconteceu com seus pais. “Eles diziam que, se a gente não aceitasse o preço que iam colocar na terra, depositariam em juízo um valor bem menor. Nós fomos obrigados a vender”, relata. 

Hoje com 38, ele vive desde os 2 anos no lote da família vendido à Belo Sun. “A gente não tem muito conhecimento. Meu pai era analfabeto, a mãe também não entendeu. Eles foram coagidos. Todas as pessoas que venderam aqui foram quase obrigadas a vender, porque eles ameaçavam”, afirma. 

Segundo Nogueira, a mineradora pagou um valor inferior a um terço do que a propriedade valia. Ele permanece na propriedade com a mulher e um filho sob um contrato de comodato com a empresa, mas teme ser despejado a qualquer momento. 

“Tenho 14 mil pés de cacau produtivos, cultivo milho e também planto melancia todo verão para ajudar nas despesas. Não tenho estudo, só sei mexer com terra. Quero que paguem tudo o que plantei”, contesta.
À Repórter Brasil, a Belo Sun afirma que implementará as realocações necessárias no âmbito de programa específico previsto no processo de licenciamento ambiental do Projeto Volta Grande. (Leia aqui a resposta na íntegra)

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Vila Ressaca é uma das comunidades ameaçadas de despejo por uma ordem de reintegração de posse obtida pela Belo Sun (Foto: Verena Glass/Movimento Xingu Vivo)
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