Agressões, dopagens e trabalho escravo: comunidade terapêutica de PE entra na Lista Suja

Centro Terapêutico Maanaim, na cidade de Paulista, foi incluído em cadastro do governo federal após fiscalização do Ministério do Trabalho resgatar 18 internos em condição análoga à de escravidão, em agosto de 2024
Por Jeniffer Mendonça | Edição Carlos Juliano Barros
 13/10/2025

PEDRO* tinha ingressado no Centro Terapêutico Maanaim, em Paulista, no litoral pernambucano, em busca de tratamento para dependência química após ser transferido de outro estabelecimento semelhante. Após três meses, porém, ele relata ter sido obrigado a trabalhar como chefe de cozinha do local, todos os dias, sem folga, das 4h às 20h, dormindo num colchão dentro do refeitório.

“Se tentar sair, eles dão garapa”, disse aos auditores-fiscais do MTE (Ministério do Trabalho e Emprego), em agosto de 2024, quando ele e outros 17 internos foram resgatados. Segundo depoimentos registrados no relatório de fiscalização a que a Repórter Brasil teve acesso, “garapa” seria uma mistura de remédios psicotrópicos. Uma vez dopados, os pacientes teriam sido presos em um quarto por dias, muitas vezes amarrados à cama. 

O CT Maanaim foi um dos 159 novos nomes incluídos na última atualização da chamada Lista Suja, cadastro do governo federal com nomes de empregadores responsabilizados por submeter trabalhadores a condições análogas à escravidão. 

É a segunda comunidade terapêutica a integrar o rol em dois anos. Em 2024, a Tenda do Encontro, de Juiz de Fora (MG), passou a fazer parte da relação e chegou a ser condenada na Justiça do Trabalho, como revelou a Repórter Brasil.

Comunidades terapêuticas são espaços de acolhimento e de convivência geridos por entidades privadas. Porém, não podem funcionar como equipamentos de saúde. A abordagem, baseada na abstinência, é alvo de críticas, já que comunidades terapêuticas têm sido apontadas como locais de violações sistemáticas aos direitos humanos.

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MPT pede indenização de R$ 100 mil por danos morais coletivos

No caso da CT Maanaim, uma denúncia anônima ao MPT (Ministério Público do Trabalho) desencadeou a fiscalização. O estabelecimento recebeu 18 autos de infrações trabalhistas — dentre elas, jornadas exaustivas, trabalho forçado, condições degradantes no ambiente de trabalho, falta de remuneração e registro em carteira. 

Por conta do não cumprimento dessas obrigações de forma extrajudicial, o procurador do MPT Leonardo Osório Mendonça entrou, no mês passado, com uma ação civil pública contra o centro terapêutico e o seu proprietário, Fernando Antônio da Silva Miranda.

A Repórter Brasil tentou localizar Miranda com base nos contatos indicados nos processos trabalhista e criminal, mas não obteve retorno. Os telefonemas para o número do Centro Terapêutico não foram completados.

Em depoimento à Polícia Civil, Miranda alegou que o centro foi fechado após a fiscalização. Em consulta ao site da Receita Federal, a Repórter Brasil constatou que o CNPJ do estabelecimento foi encerrado em outubro de 2024. 

A ação movida pelo MPT descreve o cenário como “grave violação de direitos trabalhistas, normas regulamentadoras de saúde e segurança, bem como da dignidade humana dos trabalhadores”. O órgão pede indenização de R$ 100 mil por danos morais coletivos, além do pagamento dos encargos trabalhistas de cada um dos resgatados.

Segundo o relatório da fiscalização, o próprio empregador teria dito que era ex-dependente químico e que as pessoas chegavam ao centro terapêutico contra a própria vontade. Posteriormente, seriam convencidas a permanecer. Também teria confirmado que os acolhidos trabalhavam no espaço e que “pacientes em surto” recebiam a “garapa” e eram amarrados nas camas. 

MPT pede indenização de R$ 100 mil por danos morais coletivos, além do pagamento dos encargos trabalhistas de cada um dos resgatados. (Foto: Reprodução/MTE)
MPT pede indenização de R$ 100 mil por danos morais coletivos, além do pagamento dos encargos trabalhistas de cada um dos resgatados. (Foto: Reprodução/MTE)

Tanto os auditores quanto o procurador avaliaram que o ambiente violava a Resolução 29/2011, da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). A norma prevê que comunidades terapêuticas são espaços de convivência entre pares. A permanência deve ser voluntária e o interno tem o direito de deixar o espaço quando quiser.  

A resolução estabelece ainda que pessoas com transtornos mentais com necessidade de acompanhamento médico não podem ficar nesses lugares. Comunidades terapêuticas não são unidades de saúde, e o manejo de medicamentos deve ser realizado por profissional habilitado. 

No entanto, a fiscalização apontou a presença de idosos no local que precisavam de cuidados e de pessoas com transtornos mentais.

Castigos, água suja e constrangimentos

De acordo com o relatório da operação, das 62 pessoas acolhidas, 18 trabalhavam como “monitores”, com tarefas que iam da preparação das refeições e limpeza à vigilância e contenção de internos “em surto”. Ninguém teria recebido remuneração ou capacitação adequada para as atividades, sob alegação de “laborterapia”. 

Os depoimentos indicam que havia hierarquia entre acolhidos, o que diferenciava o nível de acesso aos espaços e comunicação com familiares, por exemplo. Parte deles trabalhava em escala 3×3: três dias de plantão e três de “tratamento”. Quem atuava na cozinha não tinha folga.

Resgatado em fiscalização relatou ter dormido em colchão dentro de refeitório (Foto: Reprodução/MTE)
Resgatado em fiscalização relatou ter dormido em colchão dentro de refeitório (Foto: Reprodução/MTE)

De acordo com o relatório, os internos afirmaram que não podiam falar com parentes, presencialmente ou por telefone, sem a supervisão de um monitor. 

O relatório aponta ainda que a água usada no local estava suja, sendo que um dos internos disse que ao menos quatro pessoas estavam com dor de barriga no dia da fiscalização e que a cisterna estava “cheia de bichinhos”. Também não havia cama para todos e parte dos acolhidos dormia em colchão no chão.

Os resgatados também relataram que seriam submetidos a um castigo chamado de “danos e consequências”: quando um interno fazia algo que não era considerado aceitável, era colocado numa cadeira no centro de uma roda para ser humilhado verbalmente.

Dono é réu por maus tratos, cárcere privado e falsificação de laudo dos bombeiros

Quase um mês depois da operação do MTE, a equipe de Vigilância Sanitária da Prefeitura de Paulista e o Corpo de Bombeiros foram ao Centro Terapêutico Maanaim realizar uma inspeção, em setembro de 2024. 

Segundo o boletim de ocorrência, o AVCB (Auto de Vistoria do Corpo de Bombeiros) apresentado por Fernando Miranda era falso e a documentação do espaço estava irregular. Apesar de o centro corresponder a uma área de 750 metros quadrados, o documento indicava apenas 50. Também havia a indicação de que a capacidade era para 40 internos — no entanto, havia 70 pessoas acolhidas. 

Em janeiro deste ano, o proprietário da CT se tornou réu por maus tratos, cárcere privado e uso de documento falso em âmbito criminal. Um outro homem, que forneceu o AVCB falso a ele, é réu por falsificação de documento público. O processo ainda está em andamento e ambos respondem em liberdade.

À reportagem, a Secretaria de Saúde da Prefeitura de Paulista informou que a comunidade terapêutica está interditada pela Vigilância Sanitária desde outubro de 2024. Em nota, a pasta informou que “uma nova vistoria está prevista para ocorrer dentro de alguns dias”.

*O nome do interno resgatado foi alterado para preservar sua identidade

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O CT Maanaim foi um dos 159 novos nomes incluídos na atualização da Lista Suja de outubro de 2025 (Foto: Reprodução/MTE)
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