Pontal do Paranapanema

Governo de SP tenta reconhecer fazendas suspeitas de grilagem

Projeto de lei do governador José Serra prevê regularização de propriedades acima de 500 hectares no Pontal do Paranapanema. Proposta não agrada a movimentos camponeses e nem aos próprios fazendeiros
Por Carlos Juliano Barros
 17/08/2007

Mesmo que seja aprovado pela ampla maioria que apóia o governador na Assembléia Legislativa de São Paulo (Alesp), instância em que tramita em regime de urgência, o projeto de lei (PL) 578/2007 – concebido pelo gabinete de José Serra com o objetivo de regularizar as propriedades com mais de 500 hectares no Pontal do Paranapanema, extremo-oeste do estado – não resolverá os conflitos fundiários da região. Além disso, na avaliação de pesquisadores e de integrantes de movimentos sociais, pode legitimar a posse de terras públicas apropriadas de forma fraudulenta por fazendeiros.

Enviado à Assembléia no dia 15 de junho, o PL é a mais recente aposta do governo para colocar fim às disputas que se arrastam há anos na Justiça entre fazendeiros e poder público pela posse de terras no Pontal. Por meio de um acordo entre as partes, ele prevê a regularização de aproximadamente 200 propriedades que ocupam um total de 300 mil hectares.

Em troca do título definitivo das áreas, os atuais ocupantes deverão ceder ao estado, no mínimo, 15% e, no máximo, 25% de suas terras – índice que varia de acordo com as dimensões das propriedades. Aqueles que não quiserem abrir mão dessa parcela podem optar pelo pagamento do preço da gleba que seria revertida ao governo. O dinheiro será aplicado em um fundo de apoio ao desenvolvimento dos assentamentos locais. "O projeto tem dois objetivos principais: pacificar os conflitos e arrecadar terras para a reforma agrária no curto prazo", define o procurador José Milton Garcia, que participou da redação do PL.

Por outro lado, na opinião do professor Bernardo Mançano, do Departamento de Geografia da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), a iniciativa de Serra depõe contra o histórico de tratamento da questão do próprio governo estadual, que desde meados do século passado tenta reaver na Justiça as terras "griladas" – expressão que se refere àquelas áreas cujos registros oficiais foram falsificados – no Pontal. "É um ato vergonhoso. Isso vai multiplicar os problemas fundiários", classifica o professor Bernardo. Só que agora, observa o acadêmico, a disputa vai ser por terras aparentemente "regularizadas".

Histórico
Para entender a trajetória dos conflitos fundiários no Pontal do Paranapanema, uma das áreas de maior tensão no campo brasileiro, é preciso voltar à segunda metade do século XIX. Naquela época, quando os primeiros fazendeiros desbravaram a região, os registros de imóveis rurais podiam ser feitos por pequenas paróquias locais, já que o poder público não tinha estrutura suficiente para desempenhar essa função, que acabou repassada à Igreja Católica. As primeiras fraudes de escrituras, mediante falsificação da assinatura de párocos, datam desse período. "Mesmo com fatos públicos e notórios, que mostram como se deu a história da grilagem, os processos ainda não foram resolvidos na Justiça", sustenta José Milton Garcia.

"Do século XIX até o começo dos anos de 1990, o Estado não reconheceu as terras griladas, mas deixou que esses fazendeiros agissem livremente, desmatando as áreas, e nunca os tirou de lá", analisa Bernardo Mançano. Com a chegada dos Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) ao Pontal do Paranapanema, na última década do século XX, a demanda por áreas para assentamentos reaqueceu as batalhas judiciais entre os fazendeiros, dispostos a manter seus domínios, e o poder público, que não corresponde à pressão social pela reforma agrária.

Hoje em dia, existem cerca de 3,7 mil famílias acampadas nessa parte do estado de São Paulo, organizadas sob a bandeira de cinco movimentos, além do MST. "Mas não existe interesse do governo do estado em redistribuir as terras. Ele vai privilegiar 200 famílias e deixar milhares na mão", critica Laércio Barbosa, integrante da direção do MST em São Paulo. "Tanto é que, em vez de ceder as áreas, os fazendeiros podem optar pelo pagamento", completa.

Problemas
Curiosamente, o PL 578/2007 também desagradou aos fazendeiros. Para Luiz Antônio Nabhan Garcia, presidente da União Democrática Ruralista (UDR), entidade que representa os proprietários de terra, a contrapartida exigida pelo governo para titulação é alta demais. Ele acredita que a proposta do governo não conseguirá atrair muitos simpatizantes. "Se for para entregar 20% da minha terra, vou continuar na Justiça porque sei que vou ganhar", explica. Luiz Antônio afirma que a acusação de que as áreas sob posse dos fazendeiros são devolutas não passa de "lenda e falácia", e que todos os proprietários possuem escrituras como "manda a lei". Diz ainda que apóia a medida do governo, mas discorda da forma com que ela foi apresentada à Assembléia. "Se esse percentual diminuísse, até o máximo de 10%, aí a adesão seria maior", avalia.

Na opinião do deputado Mauro Bragato (PSDB), do bloco do governo, o formato final do projeto de lei ainda não está fechado e precisa ser debatido na Assembléia para que se chegue a uma proposta que resolva a delicada situação fundiária da região. "Para tirar os fazendeiros do Pontal, só com acordo ou decisão judicial. E eles jogam com o tempo porque acreditam que vão ganhar na Justiça", afirma. Na visão da base governista, entrar em consenso com os fazendeiros seria então a única forma de recuperar pelo menos parte das áreas. Sobre a avaliação de que a proposta estaria legitimando a grilagem de terras no pontal, Bragato rebate dizendo que essa é uma "discussão ideológica".

O PL 578/2007 já despertou a reação da bancada oposicionista na Alesp. Hamilton Pereira (PT), por exemplo, chegou a elaborar um texto substitutivo. Caso não seja acatado pelos colegas parlamentares, o deputado pretende apresentar emendas que corrijam pontos que ele considera problemáticos. Em primeiro lugar, não existe menção no projeto de lei ao limite máximo do tamanho das terras que estão em negociação. "A Constituição determina que a alienação ou concessão de terras públicas com áreas superiores a 2,5 mil hectares depende de autorização do Congresso Nacional. O governo do estado não pode atropelar a Constituição", argumenta.

Hamilton Pereira também entende que o PL não garante segurança jurídica à regularização das áreas, já que também seria necessária uma ação discriminatória – que determina se a terra é de fato pública ou particular – no âmbito judicial para dar sustentação à decisão do governo. "Um oficial de cartório poderia ser incriminado por registrar uma propriedade que não foi reconhecida na Justiça",
explica. Segundo o procurador José Milton Garcia, uma vez firmado o acordo entre fazendeiros e governo, a disputa judicial seria encerrada. Porém, nada impediria que uma terceira entidade descontente com o desfecho do caso, como os movimentos de luta pela reforma agrária, movesse uma ação para contestar o processo de titulação das terras.

Cana-de-açúcar
De acordo com o presidente da UDR e o procurador José Milton Garcia, as disputas por terra no Pontal do Paranapanema afugentam os investidores da região, dificultando a geração de emprego e a expansão do agronegócio. Entretanto, esse clima de insegurança não parece contaminar os empresários do setor sucroalcooleiro, já que as lavouras de cana-de-açúcar vêm avançando a passos largos sobre o oeste paulista. A prova mais recente do vigor desse segmento é o investimento de R$ 290 milhões feito pelo grupo da tradicional empreiteira Odebrecht, em julho passado, para comprar e ampliar a Usina Alcídia, localizada no município de Teodoro Sampaio (SP).

De acordo com Laércio, do MST, por conta da falta de investimento nos assentamentos, alguns beneficiários da reforma agrária estão procurando emprego no corte da cana para garantir sua sobrevivência. Ele também revela que fazendeiros do Pontal vêm arrendando suas terras para plantações da matéria-prima do álcool. Assim, o PL 578/2007 – que permite a eles regularizar o título de suas propriedades mediante pagamento pelas terras em disputa com o governo estadual – pode impulsionar a monocultura na região, já que os fazendeiros usariam o dinheiro obtido com a cana para quitar suas pendências com o governo.

"Se aprovado, o projeto vai regularizar latifúndios improdutivos que estão nas mãos de pessoas que não contribuem em nada para a produção agrícola paulista", conclui o deputado Hamilton Pereira.

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