Questão indígena

Guaranis de 4 países apostam na união para reivindicar direitos

Espalhados por um território que vai da Argentina à Bolívia, membros de diversos grupos do povo guarani se reuniram em Caarapó (MS) para articular luta conjunta contra os problemas comuns que atingem suas comunidades
Por André Campos
 24/09/2007

Caarapó (MS) – Cerca de 300 pessoas se encontraram no último fim-de-semana (21 a 23) na aldeia Tey Kue para debater o futuro do povo guarani, que vive espalhado por diversas regiões da América Latina. O objetivo da reunião foi o de iniciar uma articulação dos diversos grupos que compõem a etnia para fortalecer a defesa conjunta dos seus direitos. A busca pela demarcação de territórios e pelo fortalecimento do modo de vida guarani frente às pressões externas são alguns dos pontos de preocupação comuns a várias de suas comunidades atuais.

 
Encontro no Mato Grosso do Sul reuniu 300 indí-genas de quatro países diferentes para debater problemas comuns (Foto: André Campos)

"Nós precisamos unir todos os guaranis para lutarmos junto", defende Otoniel Ricardo, professor na aldeia Tey Kue e representante da comissão de professores guaranis do Mato Grosso do Sul. "Ainda falta estarmos organizados como um só povo."

Em conjunto, as diversas comunidades dos guaranis formam um dos mais populosos grupos nativos do continente sul-americano. Apesar de não existirem dados conclusivos, estima-se, a partir de censos oficiais e informações de organizações indígenas, que vivam aproximadamente 150 mil na Bolívia, 53 mil no Paraguai, 50 mil no Brasil e 42 mil na Argentina. Representantes dos quatro países estiveram presentes ao encontro. Além dos locais citados, há também estudos que apontam a possível existência de indivíduos desse povo no Uruguai.

Em terras brasileiras, os guaranis ocupam áreas ao menos em oito estados – Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul e Pará. De forma geral, são divididos por antropólogos em três grandes subgrupos: os mbyás, que vivem predominantemente nos estados do Sul e no litoral; os nhandéva ou chiripá, que possuem representantes, por exemplo, no Mato Grosso do Sul e em São Paulo; e os pãi-tavyterã ou kaiowá, presentes essencialmente áreas no Mato Grosso do Sul, sendo o mais numeroso subgrupo em território nacional.

O evento foi articulado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e marca o lançamento da campanha "Povo Guarani, Grande Povo!" – cujo objetivo é justamente avançar no reconhecimento dos valores e dos direitos dessas comunidades. A iniciativa dá continuidade a outras atividades recentes com esse mesmo espírito de integração, a exemplo do 2º Encontro Continental Guarani, realizado na cidade de Porto Alegre, em abril deste ano.

 
Ao final do encontro, guaranis divulgaram docu-mento pelo qual pedem respeito às organizações indígenas (Foto: Marcy Picanço) 

Ao final do encontro de Caarapó, os indígenas presentes divulgaram documento no qual exigem, entre outros pontos, respeito aos rezadores e às organizações indígenas – sejam elas regularizadas ou não; justiça nos casos de assassinato de lideranças; direito a educação diferenciada e à participação ampla das comunidades na elaboração de projetos e decisões que atinjam a eles próprios; além do cumprimento, no Brasil, das conquistas advindas com a Constituição de 1988, com especial ênfase em relação à questão territorial.

História de resistência
Separados por circunstâncias que remontam há séculos, os diversos subgrupos guaranis identificados hoje possuem diferenças culturais sensíveis entre eles. Além dos já citados, há também outros, como, por exemplo, os Avá Guarani, com representantes na Argentina e no Paraguai, e os chiriguanos, que vivem na Bolívia. Em determinados locais, existe inclusive histórico de oposição e tensão entre esses subgrupos.

Antes da chegada do homem branco, comunidades guaranis já se encontravam amplamente disseminadas pela Bacia do Prata, vindas da região amazônica. O contato entre eles e a sociedade européia deu-se a partir dos primeiros anos da colonização, num passado marcado pela perseguição sistemática desses indígenas por bandeirantes, assim como pela formação de grandes comunidades missioneiras onde dezenas de milhares deles viveram sob a tutela de padres jesuítas. A violência, a catequese, a ocupação do território pelos colonialistas e as dinâmicas internas das próprias comunidades foram alguns dos fatores que contribuíram para movimentos migratórios e para a diferenciação entre os diversos subgrupos.

Mas, apesar dessa fragmentação, é marcante em todas as comunidades remanescentes a preservação da língua original entre seus membros. Também permanecem disseminadas mitologias comuns, como o ideal da "terra sem males" – manifestação cultural ainda misteriosa para aqueles que não compreendem plenamente a cultura guarani, relacionada à busca de práticas espirituais e de um espaço físico que permitam a total viabilização do modo de vida ideal dos guaranis.

As diferenças na língua, fomentadas ao longo de séculos de distância temporal e física, não impediram que representantes dos subgrupos e países distintos presentes em Caarapó conversassem fluentemente na língua materna. Tal fato foi surpreendente até mesmo para muitos dos guaranis, que lá se encontravam pela primeira vez com seus "parentes" de outras regiões da América do Sul.

"Na história dos povos, é bastante comum haver esses processos de dispersão e unificação", acredita Egon Heck, coordenador do Cimi no Mato Grosso do Sul. Para ele, numa conjuntura altamente desfavorável a determinado povo, é natural que ele busque se unir para realizar um enfrentamento. "Estamos num momento em que existe, entre os guaranis, um processo de reaproximação em busca de raízes comuns, de construção de alianças exatamente devido ao histórico de negação de direitos a que foram submetidos."

O evento foi uma oportunidade para que indígenas brasileiros conhecessem formas de articulação política das aldeias em outros países. A boliviana Elida Urapuca, presidente da Central de Organizaciones de los Pueblos Nativos Guarayos (Copnag), esteve presente e trouxe informações sobre as principais bandeiras de luta que envolvem as 350 comunidades guaranis existentes no país. Eles demandam, por exemplo, o reconhecimento de formas mais amplas de autonomia da nação guarani local, n&atilde
;o subordinadas às organizações políticas nacionais, além do controle total dos recursos naturais presentes em seus territórios.

Elida mostrou preocupação ao analisar a situação dos guaranis no Mato Grosso do Sul – onde as aldeias enfrentam sérios problemas de superpopulação, violência interna, suicídios, alcoolismo, falta de terras e de apoio político regional. "Isso me entristece. Aqui os índios são poucos, enquanto na Bolívia são maioria."

Também esteve em Caarapó o paraguaio Julio Martinez, da Asociación Avá Guarani de Alto Kanindeyú, que congrega 6 mil pessoas. Numa primeira análise, ele avalia que os guaranis brasileiros parecem ter mais apoio assistencialista por parte do governo do que os índigenas paraguaios, enquanto que, em seu país, ainda há mais terras não devastadas e propícias ao modo de vida dos guaranis. "Isso [a situação no Brasil] é algo perigoso, inclusive porque a cesta básica pode a qualquer momento não vir mais", reflete.

"Temos de pensar num projeto de longo prazo para nós, algo que dure por cem anos", ressaltou durante o evento Anastácio Peralta, professor da aldeia de Dourados (MS). Além de fomentar articulações nacionais e internacionais, ele defende também o fortalecimento das ações de base nas aldeias guaranis, que permitam, por exemplo, a retomada de lavouras desarticuladas nas últimas décadas. "Um povo que não produz seu próprio sustento é um povo acabado."

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