Povo guarani inicia jornada de lutas contra proposta que pretende transferir ao Legislativo prerrogativa para homologação de terras indígenas. Também pedem demarcação de dois territórios na capital
São Paulo – Cerca de 200 índios guarani que moram em aldeias localizadas no município de São Paulo fecharam pacificamente no início da manhã de hoje (26) a Rodovia dos Bandeirantes, sentido capital, na altura do km 20, zona noroeste da cidade. O trânsito ficou interrompido por aproximadamente uma hora e meia. A polícia esteve no local, mas negociou com os manifestantes e não interveio.
“Se não tem PEC, dialogamos com o governo. Com a ameaça da PEC, não tem outro jeito: temos de lutar”, afirma Marcos Tupã, 42 anos, coordenador geral da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), organização política que congrega povos guarani-mbya e guarani-nhandeva das regiões Sul e Sudeste do país. A declaração de Tupã resume bastante bem a razão que levou os guarani a deixar de lado sua vocação negociadora e ir às ruas: eles são radicalmente contrários à Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215, que aguarda formação de comissão especial na Câmara.
Apresentado em 2000 pelo deputado Almir Sá (PPB-RR), o projeto pretende transferir para o Legislativo a competência para demarcar territórios de ocupação tradicional no Brasil, sejam indígenas ou quilombolas. Desde a Constituição de 1988, essa prerrogativa cabe exclusivamente ao governo federal. São basicamente três fases. A Fundação Nacional do Índio (Funai) realiza estudos antropológicos, geográficos e fundiários que atestam – ou não – a ancestralidade do território. Uma vez aprovado o relatório, o Ministério da Justiça deve assinar um documento chamado Portaria Declaratória. A última etapa fica com a Presidência da República, responsável pela homologação da terra.
“A PEC 215 acaba com qualquer garantia de demarcação de novas terras indígenas no país”, avalia Marcos Tupã, lembrando que a bancada ruralista, que congrega integrantes tanto da oposição como da base governista, possui grande poder de influência sobre as decisões do Congresso. De acordo com o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), há pelo menos 142 deputados (de um total de 513) e 18 senadores (de 81) alinhados aos interesses dos grandes latifundiários e produtores rurais. “Por isso, estamos mobilizados nacionalmente. Queremos que a proposta seja arquivada: sua aprovação levará a mais confrontos e mais genocídio, porque os povos indígenas não ficarão de braços cruzados.”
Apesar de ser a principal razão que levou os guarani a fecharem a Rodovia dos Bandeirantes, hoje, a tramitação da PEC 215 não é o único motivo que desagrada os povos originários de São Paulo. A Comissão Guarani Yvyrupá também exige que o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, autorize imediatamente a publicação das portarias declaratórias de duas terras indígenas localizadas na capital: a Terra Indígena Tenondé Porã, na zona sul, e a Terra Indígena do Jaraguá, zona noroeste. Ambos territórios já tiveram seus estudos antropológicos realizados e aprovados pela Funai, respectivamente, em abril de 2012 e abril de 2013. Isso significa que já venceu o prazo de 90 dias para que o relatório produzido pelo órgão recebesse contestações administrativas. O texto está pronto para seguir tramitando.
“Falta apenas a assinatura do ministro”, reivindica Marcos Tupã. O líder guarani conta que as duas terras indígenas localizadas em São Paulo abrigam quatro aldeias: duas em cada território. A Terra Indígena do Jaraguá é formada pelas aldeias Pyau e Ytu. Nelas residem cerca de 600 guarani. Reconhecida na década de 1980, a reserva do Jaraguá possui uma área de apenas 1,7 hectare – o que faz dela a menor terra indígena do país. As outras duas aldeias paulistanas estão na Terra Indígena Tenondé Porã, às margens da represa Billings: se denominam Barragem e Krukutu, e também foram reconhecidas nos anos 1980. Possuem superfície de aproximadamente 26 hectares cada uma, onde se distribui uma população de 1.200 pessoas.
“Junto com a publicação das portarias declaratórias, queremos também a correção dos limites dessas duas terras indígenas”, explica Tupã, sublinhando que o artigo 231 da Constituição estabelece que os territórios tradicionais devem ser demarcados respeitando o espaço necessário para a sobrevivência de suas culturas. “Em São Paulo vivemos em áreas muito pequenas. As famílias cresceram bastante, e o espaço não permite que vivamos à nossa maneira. O que temos são apenas fragmentos de terra. Não dá para desenvolver nossos saberes e práticas, nem transmiti-los às crianças. A correção dos limites permitirá que tenhamos mais mata e espaço para nossas roças e atividades tradicionais.”
Outra reivindicação dos indígenas que fecharam a Rodovia dos Bandeirantes é o fim dos processos judiciais movidos pelo governo do estado de São Paulo contra povos guarani cujos territórios se sobrepõem aos limites de parques estaduais. É o caso da Terra Indígena Peguoaty, no município de Sete Barras, na região do Vale do Ribeira, e também da Terra Indígena Paranapuã, em São Vicente, no Litoral Sul. Elas compartilham seus limites territoriais com o Parque Estadual Intervales e com o Parque Estadual Paranapoã, respectivamente.
As duas terras indígenas da capital enfrentam problemas semelhantes. Cerca de 300 hectares da Terra Indígena do Jaraguá já reconhecidos pela Funai – e que entrariam na correção territorial reivindicada pelos guarani – estão sobrepostos ao Parque Estadual do Jaraguá. E a Terra Indígena Tenondé Porã tem 45% de sua superfície no interior do Parque Estadual da Serra do Mar.
“Como indígenas, não pensamos em desmatar. Temos uma forma de viver tradicionalmente, junto à natureza”, garante Marcos Tupã. O coordenador da Comissão Guarani Yvyrupa argumenta que a histórica presença dos guarani nas faixas litorâneas se deve a alguns preceitos religiosos. “Acreditamos que estar perto do mar, dentro da Mata Atlântica, nos dá fortaleza espiritual para buscar a ‘terra sem mal’ que estabelecem nossas crenças. A maioria dessas áreas, hoje, está dentro de parques estaduais. E somos acusados de invasores de parques”, contextualiza. “Queremos que o governo retire essas ações judiciais, reconhecendo a permanência dos indígenas nas terras que estão em sobreposição, e que possa haver uma gestão compartilhada entre governo do estado, povos indígenas e Funai.”
Além das três razões políticas, o fechamento da Rodovia dos Bandeirantes possui para os guarani de São Paulo uma grande simbologia. Batizada em homenagem a personagens históricos conhecidos pelos povos tradicionais como “assassinos de índios”, e que são cultuados como heróis pelos paulistas, a estrada foi construída durante o regime militar sem qualquer tipo de consulta prévia ou compensação aos guarani que já estavam instalados na região.
Como se não bastasse, a Rodovia dos Bandeirantes se apropriou de uma faixa de terra da aldeia. “Não é coincidência que a menor terra indígena do Brasil é atravessada por uma estrada com esse nome”, relaciona Marcos Tupã, classificando a bancada ruralista como os bandeirantes da atualidade. “Só querem defender o grande poder econômico: os interesses de grandes sojicultores, pecuaristas e madeireiros, que financiam esses parlamentares. Deixam de lado a preservação, os indígenas, todo o resto”
A manifestação de hoje faz parte da jornada nacional de lutas convocada pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) para barrar o avanço da PEC 215 no Congresso e trazer à tona uma série de demandas localizadas dos diversos povos tradicionais que ocupam o território brasileiro – e lutam por direitos e terras desde a chegada do colonizador branco. Em São Paulo, além do fechamento da Rodovia dos Bandeirantes, os guarani estão preparando uma grande concentração com representantes de aldeias de todo o estado no próximo 2 de outubro, na Avenida Paulista. A concentração será às 14h no vão livre do Masp.
Texto originalmente publicado na Rede Brasil Atual.