Fazendeiro diz ter mantido ‘selo Starbucks’ mesmo após caso de trabalho escravo 

Em 2021, 20 trabalhadores foram resgatados de condições análogas à escravidão na Fazenda Floresta, no Sul da Minas Gerais; novas evidências apontam que, mesmo após o flagrante, propriedade foi mantida no C.A.F.E. Practices, programa de boas práticas da Starbucks
Por Poliana Dallabrida e André Campos

NA FAZENDA FLORESTA, em Heliodora, no Sul de Minas Gerais, 20 trabalhadores foram resgatados de condições análogas à escravidão em agosto de 2021. Novas evidências obtidas pela Repórter Brasil apontam, no entanto, que mesmo após o flagrante de trabalho escravo a propriedade continuou certificada pela C.A.F.E Practices, o programa de verificação de boas práticas da rede de cafeterias Starbucks. 

Esta é a primeira vez que vem a público evidências de que o selo da Starbucks foi mantido para uma fazenda brasileira após um flagrante de trabalho escravo. O caso é detalhado no relatório “STARBUCKS: novos casos de escravidão envolvendo fornecedores de café da multinacional”, publicado nesta segunda-feira (27) pela Repórter Brasil.

As vítimas na Fazenda Floresta sofriam descontos ilegais nos salários e dormiam em alojamentos sem forro e com frestas nas paredes, segundo o relatório da fiscalização conduzida por auditores do MTE (Ministério do Trabalho e Emprego). Um dos dormitórios destinados ao grupo ficava ao lado de uma área com esgoto à céu aberto, de acordo com o mesmo documento, que classificou como degradantes as condições impostas à mão de obra.

ASSINE NOSSA NEWSLETTER

Pelo caso, o dono da Fazenda Floresta, o produtor Guilherme Sodré Alckmin Júnior, foi incluído em abril de 2023 na Lista Suja do trabalho escravo, cadastro divulgado pelo governo federal que lista o nome dos empregadores responsabilizados pela prática. A inclusão ocorre após direito à defesa em duas instâncias na esfera administrativa do MTE.

Trabalhadores resgatados na Fazenda Floresta relataram que equipamentos de proteção individual, como luvas e botas, não eram fornecidos gratuitamente. Foto: (Arquivo/ADERE)

Mesmo após sua entrada na Lista Suja, no entanto, a propriedade continuou com a certificação C.A.F.E. Practices. É o que alega o produtor em uma notificação extrajudicial de outubro de 2023, obtida em agosto deste ano pela Repórter Brasil. O documento foi anexado a uma ação movida contra o fazendeiro pela subsidiária no Brasil da multinacional europeia Louis Dreyfus Company (LDC). Na notificação, a assessoria jurídica do produtor alegou que a Fazenda Floresta detinha, naquele momento, a certificação C.A.F.E. Practices, com validade até julho de 2024.

A LDC figura na lista de fornecedores da Starbucks. Na ação judicial, a companhia pedia a rescisão de três contratos de compra e venda de café assinados com Alckmin Júnior em 2020 para a entrega de 1,2 mil sacas do grão em safras posteriores. Os documentos, acessados pela reportagem, indicavam que o café entregue deveria ser de lotes certificados pelo programa C.A.F.E. Practices.

O pedido de rescisão contratual ocorreu por dois motivos: pela inclusão do nome do empregador na Lista Suja, o que a LDC alegou ser uma violação ao seu Manual de Conduta para Fornecedores de Matéria-Prima, e pela não entrega do produto por parte de Alckmin Junior. Segundo a defesa do produtor, o café não foi entregue em razão de geadas ocorridas na lavoura.

Numa notificação encaminhada à empresa, os advogados do cafeicultor classificaram a relação com a LDC como “sadia, justa, equilibrada, de confiança e principalmente de boa-fé”, o que resultou na inclusão da Fazenda Floresta no programa de certificação C.A.F.E. Practices por intermédio da multinacional. A defesa destacou também que a Fazenda Floresta passou por várias auditorias desde 2018 e que “após a fiscalização do Ministério do Trabalho em agosto de 2021, foram oportunizadas visitas de verificação das empresas e certificadoras que constataram e documentaram a conformidade com a legislação”, disse a assessoria jurídica do produtor à época.

Alckmin Júnior permaneceu na Lista Suja até pelo menos outubro de 2024. O empregador entrou na Justiça para anular o auto de infração por trabalho escravo e a consequente entrada no cadastro. O produtor perdeu em primeira e segunda instância e agora aguarda o julgamento de um recurso final no Tribunal Superior do Trabalho.

A Repórter Brasil procurou Alckmin Junior por meio de seu advogado, mas o produtor optou por não se manifestar, afirmando que todas as informações pertinentes ao caso já foram prestadas à Justiça.

A LDC afirmou que tomou conhecimento do caso em 2021 e confirmou que, à época, realizou uma vistoria no local. Disse também que suspendeu novas compras do produtor e que, em 2023, rescindiu os contratos devido à inclusão de Alckmin Junior na Lista Suja. Atualmente, afirmou a empresa, o cafeicultor não é fornecedor da LDC. 

A Starbucks foi questionada sobre o caso pela Repórter Brasil, que apresentou os documentos onde o produtor afirmou ter permanecido no programa mesmo após a sua inclusão na Lista Suja. A empresa, no entanto, não comentou o caso específico, limitando-se a apresentar informações genéricas sobre suas políticas de responsabilidade relacionadas à aquisição de café no Brasil. A resposta da Starbucks pode ser lida, na íntegra, aqui.

Escravidão em fazendas ligadas a fornecedor da Starbucks 

O relatório publicado nesta segunda-feira pela Repórter Brasil também destaca os novos flagrantes de trabalho escravo, identificados na safra de 2025, que envolveram fazendeiros ligados a um dos maiores fornecedores globais da Starbucks no Brasil, a Cooxupé (Cooperativa Regional de Cafeicultores em Guaxupé).

Maior cooperativa de café arábica do Brasil, a Cooxupé exportou 80% do café recebido de seus cooperados em 2024. A Starbucks é apontada como um dos principais clientes da cooperativa no exterior e integra a lista de fornecedores de café divulgada pela companhia americana. 

Informações repassadas pelo MTE à Repórter Brasil indicam que, ao longo da colheita de café na safra de 2025, concluída em setembro, foram flagrados 15 casos de trabalho escravo em fazendas brasileiras produtoras do grão. Desse total, cinco envolviam cafeicultores membros da Cooxupé. 

Entre abril e agosto deste ano, 15 produtores de café foram autuados por trabalho escravo; Cooxupé bloqueou a matrícula de 5. Na foto, fazenda de café no Sul de Minas Gerais (Foto: Lela Beltrão/Repórter Brasil)

Em setembro, a Repórter Brasil mostrou que uma criança de 12 anos, um adolescente de 16 e um idoso de 72 estavam entre as 81 vítimas resgatadas nos casos de produtores ligados à cooperativa, segundo relatórios de fiscalização e autos de infração que descrevem os flagrantes, acessados pela reportagem. 

À época da publicação da reportagem, a Cooxupé afirmou que bloqueou a matrícula dos cinco produtores. Também disse que “não comercializa café de propriedades que descumpram a legislação trabalhista” e que todos os cooperados devem cumprir o Código de Conduta Ética e o Programa de Integridade da cooperativa, “que incluem a obediência expressa às leis trabalhistas vigentes”.

Também na ocasião da publicação da matéria, a Repórter Brasil perguntou à Starbucks se os cinco cooperados da Cooxupé flagrados usando mão de obra escrava este ano integram ou já integraram o seu programa de aquisição de café. A empresa, no entanto, não respondeu à pergunta. A Starbucks afirmou apenas que compra café de “uma pequena fração” das fazendas de membros da Cooxupé e somente daquelas verificadas por meio de seu programa C.A.F.E. Practices, que, segundo ela, inclui “auditorias rigorosas”.

Procurada novamente pela reportagem, a Starbucks não fez comentários específicos em relação à Cooxupé. A empresa disse que “permanece comprometida” em trabalhar junto aos fornecedores para avançar em práticas trabalhistas e ressaltou que, no Brasil, mantém um Centro de Apoio ao Produtor que oferece formações sobre responsabilidade social para produtores e fornecedores de café sobre a legislação trabalhista brasileira. 

A companhia também afirmou revisar e fortalecer continuamente o programa C.A.F.E. Practices e sua abordagem de devida diligência, trabalhando com organizações com “expertise relevante em remediação e implementação de recomendações, tanto no nível dos fornecedores quanto das fazendas”. Leia aqui a resposta da Starbucks na íntegra. 

Cooperativas fazem ‘tudo o que está ao alcance’?

Dias após a publicação da reportagem sobre os cinco cooperados da Cooxupé, uma nota assinada pelo presidente do Conselho Nacional do Café, organização que representa os interesses do setor, apontou que “as cooperativas não estão no campo colhendo a safra” e que a contratação de trabalhadores é de responsabilidade dos produtores. “Ou seja, tudo que está ao alcance das cooperativas é feito para punir os cooperados flagrados em tais condições”, diz trecho da nota.

“Essa alegação de que eles adotam todas as práticas cabíveis não se sustenta”, avalia Fernanda Drummond, assessora do programa de Defesa dos Direitos Socioambientais da organização Conectas. Na sua avaliação, empresas como a Starbucks e seus fornecedores deveriam ser mais transparentes sobre os cafeicultores com quem fazem negócios para que problemas trabalhistas em fazendas possam ser monitorados em diálogo com organizações de trabalhadores e outros atores da sociedade civil.

“Nem a Adere e nem vários sindicatos com quem que temos contato em muitos municípios foram alguma vez consultados por cooperativas ou certificadoras sobre casos de trabalho escravo no setor”, afirma Jorge Ferreira dos Santos, coordenador da Adere-MG (Articulação dos Empregados Rurais do Estado de Minas Gerais), organização que recebe denúncias de violações trabalhistas no campo e alerta às autoridades.

Para Jorge dos Santos, cooperativas e empresas deveriam adotar uma série de medidas para promover melhores práticas trabalhistas na cafeicultura. Elas incluem, por exemplo, incentivar acordos coletivos entre sindicatos rurais e representantes dos fazendeiros, prover assistência técnica a produtores rurais sobre normas de saúde e segurança na colheita, além de suporte contábil para a contratação formal da mão de obra.  

Processo judicial nos EUA

A relação da Starbucks com casos de trabalho escravo ligados à Cooxupé é citada também em um processo movido contra a multinacional na Justiça americana. A ação, protocolada pela ONG International Rights Advocates (IRAdvocates) em abril deste ano, pede que a companhia indenize oito trabalhadores migrantes resgatados de condições análogas à escravidão em fazendas de café de Minas Gerais. 

O processo judicial tem como base a TVPRA (Lei de Reautorização da Proteção às Vítimas de Tráfico de Pessoas), que permite processar empresas com sede ou que atuem nos EUA por crimes ocorridos fora do país. “A acusada Starbucks tinha conhecimento das violações de trabalho forçado e tráfico cometidas pela Cooxupé e suas fazendas membros”, diz a IRAdvocates na ação.

Na ação, a organização pede à Starbucks mais de USD 200 milhões (o equivalente a R$ 1,1 bilhão) em indenizações aos trabalhadores (Foto: Pexels/Dom J)
Na ação, a organização IRAdvocates pede à Starbucks mais de USD 200 milhões (o equivalente a R$ 1,1 bilhão) em indenizações aos trabalhadores (Foto: Pexels/Dom J)

Um dos casos descritos ocorreu nos sítios Córrego do Jacu e Paquera, em Juruaia (MG). Os dois sítios foram inspecionados no dia 17 de junho de 2024. Foram resgatados seis trabalhadores, entre eles um adolescente. À época do flagrante, a Repórter Brasil mostrou que o produtor autuado por trabalho escravo era cooperado da Cooxupé

‘Sistema projetado para falhar’

“É chocante que a Starbucks continue a afirmar que cumpre integralmente os seus próprios padrões de práticas cafeeiras e o seu próprio Código de Conduta, quando os fatos mostram claramente que as violações são comuns”, afirma Terrence Collingsworth, fundador e diretor-executivo da IRAdvocates, ao comentar os novos casos de trabalho escravo identificados pela Repórter Brasil em cooperados da Cooxupé.

“A Starbucks foi informada repetidamente desses problemas e que eles estavam documentados de forma muito pública. Mesmo assim, a Starbucks não corrigiu seus sistemas [de compra de café] e tratou esses casos de escravidão como se fossem maçãs podres aleatórias”, diz Etelle Higonnet, fundadora e diretora da ONG Coffee Watch.

Para Higonnet, ao manter essas condições em sua cadeia de fornecimento de café, a Cooxupé, o programa C.A.F.E. Practices e a Starbucks estão “criando condições para o fracasso”.

Leia também

APOIE

A REPÓRTER BRASIL

Sua contribuição permite que a gente continue revelando o que muita gente faz de tudo para esconder

LEIA TAMBÉM

Caso é destacado em novo relatório publicado nesta segunda-feira (27) pela Repórter Brasil, que identificou novos flagrantes de trabalho escravo na rede de fornecedores da Starbucks (Foto: Lela Beltrão/Repórter Brasil)
Assine nossa newsletter!

Receba o conteúdo da Repórter Brasil direto na sua caixa de email.
Assine nossa newsletter.