TODOS OS ANOS, os mares do Brasil recebem mais de 1 milhão de toneladas de resíduos plásticos — 8% do total global. Pesquisas científicas mostram que a contaminação pelos chamados “microplásticos” atinge até mesmo o leite materno.
Mas um poderoso lobby em Brasília, sobre o qual pouco se fala, vem barrando sistematicamente a adoção de medidas mais contundentes contra a poluição causada por esse material. Segundo a ONU (Organização das Nações Unidas), trata-se da segunda maior ameaça ambiental ao planeta, atrás apenas da crise climática.
A Repórter Brasil mapeou quem é quem no lobby do plástico. O levantamento mostra como a indústria age para barrar legislações que restringem a fabricação de certos produtos — principalmente os de uso único, como copos, canudos e sacolas.
Também revela como figuras de peso no Congresso e no governo federal têm se mostrado mais sensíveis aos apelos econômicos de empresários do que aos argumentos científicos de ambientalistas.
“A escuta ao setor produtivo é legítima e importante, desde que equilibrada com a participação de outros atores da sociedade. O que preocupa é quando essa influência da indústria é desproporcional”, pontuou à Repórter Brasil Michel Santos, gerente de Políticas Públicas da WWF-Brasil, em reportagem de agosto.
No Legislativo, a lista é liderada por um núcleo baiano: os senadores Otto Alencar (PSD) e Jaques Wagner (PT). Ambos são notórios entusiastas do Polo Petroquímico de Camaçari, na região metropolitana de Salvador, um dos maiores produtores de matéria-prima plástica do país.
Outra figura-chave no Congresso é o senador licenciado Vanderlan Cardoso (PSD/GO). Dono de uma fábrica de salgadinhos, sua campanha à prefeitura de Goiânia em 2024 recebeu R$ 90 mil em doações legalmente registradas de empresários do ramo de embalagens.
Já no Executivo, é no MDIC (Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços), comandado pelo vice-presidente Geraldo Alckmin, que a indústria do plástico encontra seus principais interlocutores.
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Entre eles, destacam-se Lucas Ramalho Maciel, secretário adjunto de Economia Verde, Descarbonização e Bioindústria, e Washington Bonini. Maciel está sempre presente nas reuniões da agenda do plástico e mantém discurso convergente com o setor.
Bonini, por sua vez, foi o responsável por ordenar a retirada de uma proposta brasileira para a limitação da produção de determinados materiais nas negociações do tratado global da ONU sobre poluição plástica, em novembro de 2024.
Em nota enviada à Repórter Brasil, o MDIC afirma que a proteção ambiental e a redução da poluição por plásticos são prioridades do governo brasileiro, “reafirmadas nas Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs) e no Plano Nacional de Economia Circular (PNEC)”.
O Executivo, diz o texto, “reafirma sua determinação em promover uma transição ecológica justa, inclusiva e responsável, que una proteção ambiental, inovação industrial e desenvolvimento sustentável”. Leia aqui a nota na íntegra.
Procurados pela reportagem, Alencar, Wagner e Cardoso não haviam dado retorno até a publicação desta reportagem. O espaço segue aberto para eventuais manifestações.

Ex-integrante de gestões petistas é o principal porta-voz da indústria
O porta-voz mais conhecido do setor em Brasília é André Passos Cordeiro, presidente-executivo da Abiquim (Associação Brasileira da Indústria Química).
Atuando nesse segmento há 20 anos, Cordeiro tem relação antiga com o PT, especialmente no Rio Grande do Sul, e passou por cargos importantes de administrações do partido nas esferas municipal, estadual e federal.
Em 2005, trabalhou com Dilma Rousseff em dois ministérios. Quase duas décadas depois, integrou a equipe de transição do terceiro mandato do presidente Lula, já como representante da Abiquim.
“O que vemos hoje é um desequilíbrio preocupante: a indústria petroquímica tem acesso e influência muito maiores do que a sociedade civil e a ciência. Enquanto o lobby trava políticas que reduziriam a poluição, toneladas de plástico continuam indo parar no mar todos os dias”, afirma Ademilson Zamboni, diretor geral no Brasil da ONG ambientalista Oceana.

À Repórter Brasil, a Abiquim diz atuar junto com mais de 30 entidades representativas da indústria, do comércio e dos serviços, e trabalhar na construção de um ambiente regulatório “moderno, equilibrado e baseado em ciência”, que priorize a competitividade da indústria e o uso “sustentável” dos plásticos.
“Agimos de forma absolutamente transparente, tornando públicas as nossas posições, com plataforma de diálogo estabelecida sobre o tema e com todas as agendas divulgadas como prevê a regulação do poder público”, afirma a nota. Leia aqui a nota na íntegra.
Projeto de Lei que reduz produção de plástico descartável está ‘parado’ há 20 meses
Em geral, a indústria sustenta que uma eventual proibição de plásticos de uso único pode acabar com 500 mil empregos e derrubar o faturamento do setor em até R$ 70 bilhões anuais. Como solução, bate nas teclas da educação ambiental e da “economia circular”, baseada no redesenho de produtos, na reciclagem e na destinação correta de resíduos.
A Abiquim defende também a participação de catadores de material reciclável e o incentivo à inovação tecnológica como outros “pilares fundamentais da economia circular”. Leia aqui a nota na íntegra.
Ambientalistas, por outro lado, sustentam que esse caminho, embora importante, por si só não é técnica nem economicamente viável para dar conta do volume produzido. Por isso, advogam pelo banimento de certos tipos de plástico, como já ocorre em mais de uma centena de países.
“O problema da poluição de plástico é como uma banheira cheia e transbordando água. Não adianta você ficar tirando água com um balde se você não fechar a torneira”, compara Paula Johns, da ACT Promoção da Saúde.
Hoje, tramitam no Congresso Nacional pelo menos 41 PLs (Projetos de Lei) que propõem limitar ou regular o uso do plástico.
“É preciso dizer que projetos não avançam não porque a sociedade civil organizada não trabalha para poder avançar, [e sim] porque as empresas têm uma política de lobby”, resumiu o deputado federal Nilto Tatto (PT/SP), coordenador da Frente Parlamentar Ambientalista, durante um seminário na Câmara dos Deputados, em setembro.
O caso mais notório é do PL 2524, que proíbe “a fabricação, a importação, a distribuição, o uso e a comercialização” de produtos plásticos descartáveis, como canudos, pratos e copos.
O texto já foi aprovado em uma comissão do Senado, mas há 20 meses está estacionado em outro colegiado da casa, a CAE (Comissão de Assuntos Econômicos), sob relatoria de Otto Alencar.

Segundo um estudo da Transparência Brasil, Alencar recebeu doações de R$ 320 mil da Coca-Cola e R$ 1,2 milhão de outras associadas da Abir (Associação Brasileira das Indústrias de Refrigerantes e de Bebidas não Alcoólicas) para a corrida eleitoral de 2014, justamente a que o levou ao Senado. Juntas, essas duas contribuições representaram um quarto dos gastos da campanha.
Em novembro de 2023, representantes da Abir, em conjunto com a Abiquim, a Abiplast (Associação Brasileira da Indústria do Plástico) e outras entidades de classe, reuniram-se com o senador Vanderlan Cardoso e se posicionaram contrariamente ao PL 2524.
Quatro meses depois do encontro, Cardoso — então presidente da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado — designou o colega Otto Alencar para a relatoria do projeto de lei.
À Repórter Brasil, a Abir respondeu que não realizou ou realiza doações a partidos e candidatos, uma vez que “desde a promulgação da Lei nº 9.504/97 em 1997, conforme artigo 24, VI, são vedadas as doações a partidos e candidatos por entidades de classe”. A Coca-Cola não deu retorno.
Para a Abiquim, o PL 2524 não segue os princípios da economia circular. “O PL prevê o banimento do plástico sem avaliação prévia de seus impactos econômicos, sociais e ambientais nos setores afetados e sociedade em geral”, diz a entidade na nota enviada à reportagem. Segundo a Abiquim, a proposta também não analisa os impactos ambientais dos materiais substitutos.
“Lutamos contra a poluição por plásticos e não contra os plásticos. Não somos favoráveis a pseudo-soluções que só tenham como objetivo a construção de narrativas, e não o compromisso efetivo com a melhoria das condições econômicas, ambientais e sociais, sobretudo nos países em desenvolvimento”, escreve a associação. Leia aqui a nota na íntegra.
No encontro de novembro de 2023 com o senador Vanderlan Cardoso, os representantes da indústria defenderam outro texto, o PL 1874/2022. Apresentada em julho de 2022 pela Comissão de Meio Ambiente do Senado, então presidida por Jaques Wagner, a proposta contempla as principais bandeiras da Abiquim.
Na visão da entidade, o projeto “organiza o marco regulatório” da política de economia circular e abre espaço para ações estruturadas para sua promoção.
Dentre outras coisas, o texto defende a promoção do “consumo sustentável”, insiste na fórmula da reciclagem e cria um programa de economia circular amplo, sem foco na poluição causada pelo plástico.
Um mês antes da apresentação do PL 1874, o senador baiano havia protocolado um projeto para limitar a produção de plásticos de uso único. Wagner, porém, voltou atrás em 24 horas.
Enviado à Câmara dos Deputados após ser aprovado no Senado, o projeto do senador baiano foi apensado (anexado) ao PL 3899/2012, que cria a Política Nacional de Economia Circular. No final de outubro, esse último PL foi aprovado em plenário e segue agora para votação no Senado.

Presidente da Abiquim participou de Plano Nacional de Economia Circular
A Abiquim é a entidade que lidera o lobby do setor privado contra qualquer restrição à produção de produtos plásticos descartáveis. Seu presidente-executivo, André Passos Cordeiro, com passagens por administrações petistas, marca presença em praticamente todas as reuniões sobre o tema com congressistas e autoridades do governo federal, além de audiências públicas.
Entre 2024 e 2025, Cordeiro participou do grupo instituído pelo Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços que elaborou o Plano Nacional de Economia Circular. Representantes da Abiplast e da Associação Brasileira da Indústria de Alimentos também contribuíram com as discussões.
Alinhado com a visão da indústria da cadeia do plástico, o documento não faz qualquer menção à necessidade de reduzir ou eliminar a produção de plásticos de uso único.
Para a Abiquim, o plano “aponta diretamente para a consolidação do Brasil como referência em sustentabilidade industrial”. Na nota enviada à reportagem, a entidade faz a ressalva de que o grupo que o discutiu e aprovou é “composto por ministérios, integrantes da sociedade civil, associações de estados e municípios e representantes do setor empresarial”. Leia aqui a nota na íntegra.
Outras figuras praticamente onipresentes nas atividades de lobby do plástico são Marcelo Pimentel, colega de Cordeiro na Abiquim, e Paulo Teixeira e José Ricardo Roriz Coelho, respectivamente presidentes executivo e do Conselho de Administração da Abiplast.
Enquanto, a exemplo de Cordeiro, Pimentel e Teixeira podem ser considerados lobistas “profissionais”, Coelho tem uma trajetória de 30 anos nas indústrias de óleo e gás, petroquímica e embalagens. No período, exerceu cargos de direção e presidência em empresas como Vitopel, Suzano Petroquímica e Nova Petroquímica. Além disso, já foi diretor, vice-presidente e presidente em exercício — em 2018 — da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo).
Procurada pela Repórter Brasil, a Abiplast optou por não se manifestar.

Governo recebeu indústria do plástico 10 vezes mais que ambientalistas em 6 anos
Um levantamento realizado pela Repórter Brasil mostrou que autoridades do governo federal receberam a indústria do plástico 10 vezes mais que ambientalistas entre junho de 2019 e junho de 2025.
A análise dos dados permite constatar uma clara intensificação do número de reuniões a partir do segundo semestre de 2022, quando foram apresentados os PLs 1874 e 2524, e foram realizados os primeiros debates do tratado global contra a poluição plástica (entre novembro e dezembro).
Em janeiro de 2023, logo após tomar posse como vice-presidente e assumir a pasta do MDIC, Alckmin recebeu a Abiquim e empresas associadas para tratar sobre a agenda estratégica da indústria química.
Em março de 2024, reuniu-se novamente com a entidade apenas três dias depois de Otto Alencar ter sido designado relator do PL 2524 na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado. Na ocasião, o presidente-executivo da Abiquim, André Passos Cordeiro, enfatizou a preocupação do setor com o projeto.

A aprovação do PL 1874, apoiado pela indústria do plástico, estava entre os itens da agenda prioritária do governo federal para os próximos dois anos, entregue em fevereiro deste ano aos líderes da Câmara dos Deputados por Alckmin e Alexandre Padilha, então ministro da SRI (Secretaria de Relações Institucionais).
O apoio de Padilha ao projeto já havia sido dado em outubro de 2023, quando o hoje ministro da Saúde recebeu a Abiquim, a Abiplast e outros representantes do setor privado e sindicatos do setor químico.
Na ocasião, após ouvir os representantes da indústria, ele disse concordar que o PL 2524, que proíbe plásticos de uso único, não seria uma solução.
Na nota enviada à Repórter Brasil, o MDIC afirma que a economia circular, da forma como proposta pelo PL 1874, é capaz de “reduzir impactos ambientais e gerar valor econômico e social”. “O desenvolvimento do Brasil depende de uma industrialização verde e inclusiva, que gere empregos de qualidade, eleve a renda média e integre cooperativas de catadores, produtores locais e comunidades tradicionais às cadeias produtivas”, diz o texto. Leia aqui a nota na íntegra.
Procurada, a assessoria de imprensa do Ministério da Saúde afirmou que Padilha não se manifestaria a respeito por se tratar de uma posição institucional da SRI na época.
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