Bayer enfrenta 160 mil ações de vítimas do glifosato nos EUA, e apenas 6 no Brasil

Repórter Brasil fez levantamento de processos jurídicos nos quais o agrotóxico glifosato é apontado como um problema para a saúde de trabalhadores e comunidades. São mais de mil casos em uma década, dos quais seis envolvem a Bayer, uma das maiores produtoras globais da substância
Por Carla Ruas e Silvia Lisboa | Edição Diego Junqueira

Agrotóxico mais vendido no Brasil, o glifosato é alvo de ao menos 1.006 ações na Justiça brasileira por danos à saúde de trabalhadores e comunidades vizinhas às plantações, segundo levantamento exclusivo da Repórter Brasil. A Bayer, uma das principais fabricantes do herbicida, responde a apenas seis processos (0,6% do total).

O cenário contrasta com o que ocorre nos Estados Unidos, onde a Bayer já desembolsou mais de 11 bilhões de dólares (R$ 59 bilhões) para encerrar cerca de 100 mil processos de vítimas do seu campeão de vendas, o Roundup, à base de glifosato. Há outras 61 mil ações pendentes de julgamento, segundo um escritório  de advocacia norte-americano que acompanha os casos.

No Brasil, os trabalhadores que afirmam ser vítimas do glifosato enfrentam dificuldades jurídicas para que seus processos avancem, segundo especialistas ouvidos pela reportagem. Em geral, o desafio é comprovar que os problemas de saúde foram provocados pela exposição ao agrotóxico. Uma das principais estratégias de defesa da indústria é justamente colocar em xeque o nexo causal, atribuindo eventuais doenças a outros fatores.

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O glifosato é usado amplamente para controle de ervas daninhas em lavouras, como soja e milho, como também em áreas urbanas e no ambiente doméstico. O avanço de sementes geneticamente modificadas resistentes ao glifosato tornou o produto ainda mais popular no contexto agrícola. 

A substância é considerada “provavelmente cancerígena” em humanos pela Iarc, agência ligada à OMS (Organização Mundial da Saúde). Já algumas agências reguladoras, como a Anvisa (Brasil) e a EPA (Estados Unidos), não consideram o produto nocivo, desde que aplicado da forma correta.

Nos EUA, contudo, cresceu o número de processos contra a Bayer na última década, principalmente após a empresa adquirir em 2018 a Monsanto, empresa que lançou o glifosato e tinha os direitos comerciais do Roundup. No Brasil, o número de ações judiciais também aumentou, mas em proporção bem menor.

A Repórter Brasil fez o levantamento com base nos dados do Jusbrasil, plataforma de tecnologia que coleta informações jurídicas públicas dos sites de tribunais, diários oficiais e órgãos públicos.

A pesquisa foi realizada com base nas palavras-chave “glifosato”, “contaminação”, “intoxicação”, “Bayer” e “Monsanto” nas seções de Peças Processuais e Jurisprudência, para processos que tramitaram entre janeiro de 2015 e setembro de 2025.

Gráfico: Rodrigo Bento/Repórter Brasil agrotóxicos, bayer, glifosato, justiça, ações judiciais
Gráfico: Rodrigo Bento/Repórter Brasil

A maioria dos casos identificados envolve trabalhadores que ajuizaram ações contra seus empregadores por efeitos e riscos decorrentes da aplicação do herbicida. Dois a cada três processos (66%) tramitaram na Justiça Trabalhista – a competência desse ramo do Judiciário para analisar ações desse tipo foi recentemente reafirmada pelo STF (Supremo Tribunal Federal).

A reportagem encontrou seis casos em que a Bayer foi acionada como “responsável” ou “responsável subsidiária”. Apenas um processo envolveu um trabalhador sem relação com a empresa — os demais eram empregados diretos ou trabalhadores de prestadoras de serviço da fabricante.

As 1.006 ações judiciais identificadas representam uma pequena fração dos mais de 76 mil casos de intoxicação não intencional por agrotóxico registrados entre 2015 e 2025, segundo o Painel de Vigilância em Saúde das Populações Expostas a Agrotóxicos, do Ministério da Saúde. 

Embora não haja dados específicos por substância, o glifosato é, de longe, o agrotóxico mais utilizado no território nacional, respondendo por 33% das 755 mil toneladas comercializadas em 2023, segundo o Ibama.

Procurada pela Repórter Brasil, a Bayer afirmou em nota que o glifosato é usado “com segurança e sucesso” no mundo todo há mais de 40 anos e que os principais órgãos reguladores “concluíram repetidamente” que os produtos “podem ser usados com segurança conforme as instruções de bula”.

A nota diz ainda que os herbicidas à base de glifosato estão entre os defensivos agrícolas mais estudados, motivo pelo qual “os agricultores no Brasil, nos EUA e em todo o mundo continuam a contar com essa solução não apenas para o controle eficaz de plantas daninhas, mas também para melhorar as práticas de cultivo, reduzir as emissões de gases de efeito estufa, preservar mais áreas de vegetação nativa e fornecer alimentos suficientes”, conclui a nota.

A fabricante foi questionada sobre os processos envolvendo o Roundup no Brasil e nos Estados Unidos, mas não respondeu.

Gráfico: Rodrigo Bento/Repórter Brasil
Gráfico: Rodrigo Bento/Repórter Brasil

Trabalhador que processou a Bayer definhou em dois anos

O único processo contra a Bayer movido por um trabalhador sem relação com a multinacional foi protocolado pelo funcionário de serviços gerais Gilson Barbosa de Souza. Ele trabalhava em um condomínio residencial em Lagoa Santa, Minas Gerais. Em 2018, com 47 anos, começou a sentir fortes dores nas pernas, dificuldades de respiração, engasgos e coceira pelo corpo. Em apenas dois anos, foi perdendo a voz e a mobilidade dos membros inferiores, até ficar dependente de cadeira de rodas.

Desde o início, Souza suspeitou que seus sintomas estavam associados ao Roundup, produto que utilizava na poda química do condomínio de 43 lotes. Segundo a família, após a aplicação, Souza costumava ficar com o macacão de algodão encharcado, que ficava em contato com o corpo até secar. “Não tinha onde tomar banho e ele chegava em casa com um cheiro forte que saía dos seus poros de suor, até no xixi”, lembra a esposa Rosângela Maria Barbosa Souza. 

Uma peregrinação a médicos em Belo Horizonte confirmou as suspeitas de Souza. Um exame diagnosticou doença do neurônio motor inferior — uma condição neurológica irreversível, degenerativa e progressiva que causa fraqueza muscular. Um laudo neurológico associou a doença ao seu trabalho de capinagem com Roundup, apontando “envenenamento [intoxicação] acidental”. A própria bula do produto alerta para possíveis “alterações do controle motor”.

Com a prova em mãos, o trabalhador contratou um escritório de advocacia para processar o condomínio. Na ação de acidente de trabalho de 2021, foram pedidos danos morais, materiais e estéticos, totalizando R$ 2,1 milhões. 

Souza, no entanto, faleceu uma semana antes da primeira audiência na Justiça. “Ele foi ficando miudinho e magrinho. Morreu triste e sem voz”, lamentou a esposa, que ficou sozinha cuidando de um filho de nove anos. O atestado de óbito apontou como causa da morte “insuficiência respiratória” e “exposição crônica a agrotóxicos”.

Após o falecimento, o escritório decidiu continuar a ação. Seguindo a estratégia de ações semelhantes no exterior, incluiu a Bayer como réu e dobrou o valor do pedido de indenização. “Eu comecei a fazer pesquisas sobre o Roundup e cheguei à conclusão de que a Bayer também deveria ser responsabilizada. Não por causa da relação de emprego, mas por ser fabricante desse produto perigoso”, diz a advogada Eliane Monteiro.

O plano, porém, não deu certo. A perícia técnica encomendada pela Justiça não confirmou a relação entre a doença do trabalhador e o uso de Roundup. Em uma audiência com testemunhas, o mesmo médico que havia feito o diagnóstico inicial mudou sua versão e disse não acreditar que o produto à base de glifosato tivesse causado intoxicação.

A Justiça acabou indeferindo a ação, aprovando apenas o pagamento do FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço) à viúva. “Realmente não tem como ir contra a Bayer no Brasil”, afirma a advogada. “Se a gente entrasse só contra o condomínio, o processo poderia ter tido um outro rumo. Mas como entrou com uma empresa maior, a pressão também é muito maior”, complementa. Um recurso contra a decisão deverá ser apresentado nos próximos meses.

(Gráfico: Rodrigo Bento/Repórter Brasil)

Vaqueiro de 32 anos que aplicava agrotóxicos sem EPI perdeu forças para trabalhar

Autores de processos de intoxicação e adoecimento por agrotóxicos no país sofrem para garantir reconhecimento e indenizações justas a trabalhadores.

Um dossiê feito pela Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e a ONG Terra de Direitos analisou 30 casos de contaminação de comunidades e da biodiversidade (mortandade de abelhas), a fim de identificar as dificuldades do acesso à Justiça. Do total, apenas 17 episódios foram judicializados e, desse grupo, um terço obteve alguma reparação. Em nenhum caso, porém, houve compensação por todos os danos sofridos.

Até mesmo quando há provas da relação causal de intoxicação, as indenizações conferidas pela Justiça ficam aquém do dano provocado, segundo organizações e advogados ouvidos pela reportagem. 

É o caso do vaqueiro Robson Pereira de Morais, que trabalhou por seis anos em uma fazenda de gado de corte no interior de Goiás. Após os dois primeiros anos, ele recebeu a tarefa de aplicar um coquetel de agrotóxicos, entre eles o glifosato e o 2,4-D, para matar ervas daninhas nas pastagens. Ele conta que usava uma mochila costal sem nenhum equipamento de proteção individual, os EPIs. 

Segundo Morais, a nova tarefa lhe rendeu uma doença renal crônica e o levou à fila de transplantes. “Todo mundo trabalhou com veneno na fazenda e passou mal. Mas o mais prejudicado fui eu”, disse, por telefone, desde a sua casa na periferia de Vila Propício (GO), onde mora com os pais aposentados. 

Sem poder trabalhar, entrou com uma ação contra o empregador, que, segundo Morais, nunca teria assinado sua carteira de trabalho, nem instruído sobre os riscos dos agrotóxicos. 

Uma médica perita da Justiça do Trabalho constatou que as substâncias que Morais manuseava pelo menos duas vezes por semana eram absorvidas pelas mucosas e metabolizadas pelo fígado e rins, causando danos severos — a própria bula dos produtos indicava essa possibilidade. 

Morais ganhou a ação e recebeu R$ 30 mil por danos morais, além de uma indenização mensal menor que um salário mínimo. “Recebo uns R$ 700 deles”, diz. A Justiça também concedeu um adicional retroativo de 20% sobre o salário de R$ 1.200 que Morais recebia à época, por considerar de grau de insalubridade médio o trabalho com agrotóxicos em temperaturas perigosas.

“É um valor irrisório para a dimensão do dano. Não houve reparação”, avalia o advogado de Morais, Pedro Henrique Milhomem de Almeida. “Gasto tudo com remédios”, conta o trabalhador. 

O juiz da Vara do Trabalho também alegou que, após o transplante, Morais poderia voltar ao ofício. Ele discorda: “O pior é que trabalhei desde cedo, mas agora tenho 32 anos e não tenho mais condições.”

Uso de bomba costal sem EPI para aplicação de agrotóxicos ameaça a saúde de trabalhadores e é um dos motivos que levam os casos à Justiça (Foto: Freepik)
Uso de bomba costal sem EPI para aplicação de agrotóxicos ameaça a saúde de trabalhadores e é um dos motivos que levam os casos à Justiça (Foto: Freepik)

Judiciário exige das vítimas ônus da prova das contaminações, contrariando STJ

“Nosso modelo de responsabilidade civil é muito diferente do anglo-saxão, onde este tipo de ação prospera e tem indenizações grandes. Aqui as indenizações são muito baixas e há uma jurisprudência que entende que as pessoas processam empresas para tirar vantagem”, comenta Emiliano Maldonado, professor de Direito da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e membro da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida, sobre processos movidos por trabalhadores contaminados por pesticidas. 

“Nossos juízes vêm das elites e, se olharmos para os eventos da magistratura, há uma relação clara com o agronegócio. Há um aspecto ideológico, portanto, além da falta de tradição, para esse tipo de processo não avançar”, complementa.

Além disso, ele diz que os trabalhadores vítimas de contaminações têm alto grau de dependência das empresas do agro, o que dificulta a judicialização dos casos. “Se elas a processarem, o que farão?”, questiona.

Outra barreira ocorre dentro dos tribunais: a exigência de comprovar o nexo causal entre a contaminação e a doença recai sobre as vítimas. Uma das bandeiras da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos é a inversão do ônus da prova. A súmula 618 do STJ (Superior Tribunal de Justiça) aponta nesse sentido. “Só que os juízes de primeiro grau e os tribunais estaduais não têm aplicado [a norma] adequadamente”, avalia o professor.

Além disso, a contaminação no sangue, na urina ou nas plantas e nos animais só pode ser atestada por laboratórios específicos, geralmente pouco acessíveis às vítimas. “Às vezes, é preciso um laboratório especializado, e você não tem acesso a esse laboratório nem dinheiro. Você precisa de muitas provas colhidas em um certo tempo para que as substâncias sejam detectadas”, diz Daisy Ribeiro, assessora jurídica da ONG Terra de Direitos. “Sem falar que muitas pessoas são ameaçadas quando contam que vão atrás de seus direitos. Há um perigo real em fazer uma denúncia”, acrescenta. 

A dificuldade de provar a relação entre exposição e dano começa muito antes dos tribunais. Em muitos casos, as pessoas sequer relacionam pesticidas a dores de cabeça ou a dificuldades respiratórias — dois sintomas comuns às intoxicações por agrotóxicos. E poucos chegam a procurar um serviço de saúde — a OMS estima que, para cada intoxicação informada, há outros 50 casos desconhecidos.

Lavouras ficam muito próximas às casas de famílias Avá-Guarani no oeste do Paraná, onde produtos da Bayer têm causado contaminações, segundo os indígenas (Foto: Divulgação/Lizely Borges/Terra de Direitos)
Lavouras ficam muito próximas às casas de famílias Avá-Guarani no oeste do Paraná, onde produtos da Bayer têm causado contaminações, segundo os indígenas (Foto: Divulgação/Lizely Borges/Terra de Direitos)

Organizações denunciam Bayer à OCDE por contaminações no Brasil

A Terra de Direitos e outras cinco organizações da América Latina movem uma denúncia contra a Bayer em uma corte internacional da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico). 

Um dos casos reportados é a contaminação da comunidade indígena Avá-Guarani, do oeste do Paraná, que sofre com a deriva de glifosato em suas terras vindas de lavouras vizinhas. A deriva ocorre quando partículas de agrotóxicos, geralmente pulverizados por aeronaves, se desviam da trajetória planejada e atingem áreas próximas às plantações.  

Com exceção de três aldeias localizadas na área urbana, todas as demais aldeias Avá-Guarani estão ao lado dos plantios, conforme um estudo da Comissão Guarani Yvyrupá, a uma distância menor que 2 metros, o que viola uma portaria estadual. Os impactos vão desde perdas de produção e morte de animais a danos agudos à saúde de crianças e idosos. 

Mais de um ano depois da denúncia, porém, ainda não houve resposta. A Bayer foi questionada sobre o caso, mas não comentou.

“Buscamos a esfera internacional para que as empresas se sintam responsáveis e proativas na identificação de risco, na mitigação, com base nos tratados internacionais”, diz Ribeiro. “Se a denúncia for admitida, e a Bayer chamada a comparecer, ela precisa querer sentar numa mesa de negociação. O objetivo é prevenir novas violações de direitos, porque o princípio de precaução não é respeitado.”

Gilberto Benites, liderança da aldeia Tekoha Pohã Renda, de Terra Roxa, no Paraná, ainda recorda das perdas após as pulverizações: “Passaram por cima dos barracos, das escolas, das crianças”, descreveu o presidente dos caciques do Tekoha Guasu Guavira. “Na época, perdemos 60 galinhas, todas as árvores frutíferas, o solo parou de produzir. Tudo morre”, disse.

A comunidade teve de recomeçar um reflorestamento com espécies nativas para fazer uma barreira de proteção contra as lavouras vizinhas. Mas Benites lamenta tudo o que foi perdido: “Com a terra seca, a água não penetra e ocorrem as enxurradas. As árvores são nossas irmãs. Quando matam elas, estão matando a todos nós.”

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