‘ANM peca em muitos aspectos’, diz procuradora sobre avanço da mineração e falhas no licenciamento

Potencial brasileiro para minerais críticos é celebrado por mineradoras na COP30 pelo seu papel na transição energética, mas a procuradora Thais Medeiros da Costa alerta para os possíveis impactos sobre populações que vivem próximas às áreas de mineração
Por Isabel Harari

DE BELÉM A corrida por minerais críticos avançou sobre a Amazônia e chegou à Cúpula do Clima das Nações Unidas, a COP30. Empresas de mineração e governos têm celebrado o potencial brasileiro para extrair minérios essenciais à transição energética, mas o Ministério Público Federal do Pará vê o processo com “preocupação”.

Em entrevista exclusiva à Repórter Brasil, a procuradora Thaís Medeiros da Costa acendeu o alerta ante a expansão minerária e o possível impacto sobre povos indígenas e comunidades tradicionais. “Essa nova corrida tem um potencial de risco muito grande para os povos da Amazônia”, afirma.

Minerais como lítio, terras raras, cobre e níquel são importantes para produção de baterias e ímãs de alta potência, fundamentais para a transição energética por reduzirem a dependência de combustíveis fósseis. Por isso, projetos para a exploração de minerais críticos ganham prioridade no licenciamento ambiental e incentivos financeiros, como o recente edital do BNDES, que vai investir R$ 45 bilhões em projetos de mineração para descarbonização da economia. 

A procuradora vê um “distanciamento perigoso” entre a ANM (Agência Nacional de Mineração), que autoriza a exploração mineral, e os órgãos ambientais, que licenciam os empreendimentos. Os eventuais impactos sobre as comunidades deveriam ser uma preocupação das duas pontas da cadeia, avalia Costa.

“É preciso fazer uma dupla análise para verificar se o licenciamento foi feito de maneira adequada e se todas as garantias legais foram respeitadas. A ANM peca em muitos aspectos, e este é um deles”, diz a procuradora.

Terra Indígena Kayapó é a mais invadida pelo garimpo ilgal de ouro no país, com mais de 13 mil hectares ocupados (Foto: Marizilda Cruppe/Greenpeace)
Terra Indígena Kayapó é a mais invadida pelo garimpo ilgal de ouro no país, com mais de 13 mil hectares ocupados (Foto: Marizilda Cruppe/Greenpeace)

Levantamento da Repórter Brasil identificou mais de 7.700 requerimentos de exploração de minerais críticos na Amazônia Legal.  Uma parte deles está a menos de 10 quilômetros ou mesmo dentro de unidades de conservação ou ocupadas por povos indígenas e quilombolas. Nesse caso, a legislação determina que as comunidades afetadas sejam consultadas, o que nem sempre acontece, relata a procuradora. 

Em agosto, Thaís Costa assinou a ação civil pública que pede a anulação de uma licença para mineração de ouro em Altamira, no Pará. A ação levanta  “falhas graves” nos estudos ambientais e ausência de consulta livre, prévia e informada aos povos indígenas Kayapó das terras indígenas Baú e Menkragnoti.

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Leia a entrevista:

Repórter Brasil: Como o MPF do Pará atua diante do tema do garimpo ilegal e da mineração?

Thaís Medeiros da Costa: A mineração no estado do Pará é um tema crítico de atuação do MPF, tanto do ponto de vista da mineração legal, que passa por um processo de licenciamento ambiental que por vezes tem falhas e que desconsidera a consulta aos povos e a comunidades tradicionais, quanto do garimpo ilegal. 

O povo indígena Munduruku é vilipendiado por essa atividade diariamente.

Apesar de integrarem uma terra indígena homologada, eles são alvo de invasores que se aproveitam da fragilidade da presença do Estado para explorar recursos minerais dentro da região. O garimpo não é uma atividade que pode ser permitida em terra indígena. 

Quais são os principais impactos da mineração? 

Essas atividades têm impacto severo sobre os recursos do meio ambiente, sobre a água, sobre a terra, sobre o ar, e esses impactos são cumulativos.

É possível mitigar ou reverter esses impactos?

Conseguir reverter o impacto ambiental causado pela mineração ou garimpo ilegal é muito desafiador. O MPF vem dialogando com órgãos ambientais como o Ibama e o Ministério do Meio Ambiente, e percebemos a dificuldade de pensar soluções para a restauração dessas áreas. Vislumbramos operações de desintrusão, de retirada de invasores, mas depois sobra a devastação ambiental. Como restaurar? Esse é um desafio para o qual o governo ainda não conseguiu apresentar uma solução. Isso deve ser levado em consideração ao autorizar esse tipo de atividade [de mineração], pois o governo não sabe como combater os impactos que ela causa.

Como o MPF enxerga essa corrida pelos minerais críticos e estratégicos? 

O MPF enxerga essa nova corrida com preocupação, pois a lógica econômica do Estado brasileiro é primeiro decidir e depois garantir que aquilo saia do papel. Isso precisa ser invertido, ou seja, verificar se a atividade é viável antes de decidir por ela. Eu acredito que essa nova corrida tem um potencial lesivo muito grande para os povos da Amazônia e, por consequência, vai atrair uma atuação bem vigilante do Ministério Público.

Esse crescimento virá acompanhado de impactos ambientais. É preciso que haja uma atenção do governo para que, ao mesmo tempo que busca o crescimento econômico, possa fazê-lo de uma forma legítima e legalmente estruturada, porque senão é absolutamente inválido, ilegítimo e violador de direitos.

O estanho é considerado estratégico para a transição energética. Há denúncias de garimpo ilegal de cassiterita, o principal mineral de onde se extrai o estanho, na bacia do Tapajós, em áreas próximas às terras indígenas dos Munduruku. Como está a situação na região?

É preocupante. A mineração gera pressão fundiária, invasão de território e ameaças. No caso da cassiterita, que é um mineral cuja exploração está se intensificando na Amazônia, isso gera risco e efetivo prejuízo às comunidades. 

O garimpo fantasma de Pedro Lima fica no limite com a Terra Indígena Kayapó, em Cumaru do Norte (Créditos: Imagens da ©Airbus DS/Earthrise, cedidas para a Repórter Brasil)
Garimpo fantasma a menos de 1 km da Terra Indígena Kayapó, no Pará, alvo de investigação da Polícia Federal (Créditos: Imagens da ©Airbus DS/Earthrise, cedidas para a Repórter Brasil)

A Constituição veda a mineração dentro de terras indígenas, a menos que haja autorização do Congresso Nacional e após consulta às comunidades afetadas. Investigações da Repórter Brasil mostraram que existem processos minerários no entorno dos territórios, a menos de 10 km – considerada como áreas diretamente afetadas pela mineração. Como o MPF lida com essa questão?

Em agosto meu ofício expediu uma recomendação utilizando a própria Portaria 60, que é uma portaria interministerial, para que as Permissões de Lavra Garimpeiras (PLG) no entorno das terras indígenas, a até 10 km, fossem anuladas ou não fossem renovadas. Isso se deu justamente por causa da deficiência do licenciamento ambiental, da falta da participação da Funai e da consulta aos povos indígenas da região.

A ANM (Agência Nacional de Mineração) é o órgão governamental responsável por autorizar os processos minerários. Como ela respondeu?

A ANM afirma, reiteradamente, não ser atribuição dela verificar se o licenciamento ambiental tinha sido realizado de maneira correta ou realizar consulta livre, prévia e informada, e que, portanto, os títulos teriam sido expedidos de maneira regular. 

Vemos um distanciamento muito perigoso entre o órgão que autoriza a mineração e o órgão que licencia a mineração. Isso não pode acontecer. Não basta apenas contar com a licença ambiental; é preciso fazer uma dupla análise para verificar se o licenciamento foi feito de maneira adequada e se todas as garantias legais foram respeitadas. A ANM peca em muitos aspectos, e este é um deles.

No entendimento do MPF pode haver mineração dentro desse limite de 10 km no entorno de áreas preservadas?

Não sem a consulta aos povos indígenas, porque é um elemento previsto na Convenção nº 169 da OIT e na Portaria nº 60 [que prevê a consulta no processo de licenciamento ambiental]. O impacto dentro desse limite é um impacto presumido, o que não exclui inclusive impactos para além dos 10 km.

A ANM pode autorizar as pesquisas mineiras antes do processo de licenciamento ambiental começar. Isso aconteceu, por exemplo, em um caso revelado pela Repórter Brasil em que a ANM autorizou pesquisa para mineração de terras raras dentro da área de um quilombo no Tocantins. Por que isso pode ser um problema?

Há uma diferença entre os tipos de autorização. A autorização para pesquisa passa por um processo muito simplificado de licenciamento, que não é um processo de licenciamento ambiental. Eles se utilizam dessa premissa para afastar completamente a necessidade de licença ambiental ou para simplificar o processo, a ponto de excluir as comunidades e já autorizar o início de atividades sem a licença, sem a consulta aos povos.

Esse formato normativo na exploração minerária do Brasil é bastante antigo e precisa ser revisto. Se há um interesse do governo em explorar [os minérios], ele precisa fazer o trabalho de casa, que é rever o seu arcabouço normativo para garantir a máxima proteção ambiental, o dever de restauração ambiental e o dever de participação dos povos nesse processo.

Esta reportagem foi realizada com o apoio da Rainforest Investigations Network, do Pulitzer Center.

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