Na COP30, agronegócio disputa rumos da transição justa da produção de alimentos

Agronegócio aproveita a COP30 para dizer que já é sustentável e reivindicar fatia do financiamento climático, mas críticos defendem que uma transição justa na produção de alimentos deve priorizar comunidades tradicionais e pequenos produtores
Por Hélen Freitas

DE BELÉM (PA) A expressão “transição justa” é praticamente onipresente nos debates da COP30, a conferência sobre clima da ONU que acontece em Belém, no Pará. Está em painéis, discursos de chefes de Estado, slogans corporativos e na boca de quem critica os rumos das discussões oficiais. 

O termo, além disso, permeia os mais variados subtemas da cúpula. Mas, por trás da aparente convergência, há disputas concretas sobre seu significado. 

Um dos exemplos mais claros é em relação ao debate sobre o futuro dos sistemas alimentares: isto é, o que precisa mudar na forma como os alimentos são produzidos, armazenados, distribuídos, comercializados e consumidos. E quem deve ser financiado para colocar essa transição em prática.

Na COP30 de Belém, eventos organizados nesta semana pelos dois lados dessa disputa dão o tom do que está em jogo. 

De um lado, pesquisadores, povos tradicionais e movimentos sociais defendem que não existe justiça possível sem mexer na estrutura do sistema que hoje sustenta o lucro de grandes empresas às custas graves impactos socioambientais. De outro, o agronegócio tenta ressignificar o termo para reforçar a ideia de que o “agro brasileiro já é sustentável”.

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O modelo dominante do sistema agroalimentar global, baseado em monoculturas, uso intensivo de agrotóxicos, sementes transgênicas, cadeias longas de distribuição e explosão do consumo de ultraprocessados, tem sido apontado como um dos “vilões” do clima. 

No Brasil, o setor agropecuário foi responsável por 70% das emissões de gases de efeito estufa em 2024. Globalmente, os sistemas alimentares já são responsáveis por cerca de 30% das emissões e pressionam cinco dos nove limites planetários, segundo um relatório da Comissão EAT-Lancet, lançado em outubro. 

Uma das principais referências científicas globais em alimentação saudável e sustentável, a comissão alerta que mesmo se o mundo fizer a lição de casa no setor de produção de energia, só a forma como produzimos e consumimos comida hoje seria suficiente para estourar a meta de 1,5°C do Acordo de Paris

Narrativas opostas

“Eu não consigo imaginar uma perspectiva mais óbvia sobre transição justa no sistema agroalimentar do que reconhecer, apoiar e empoderar movimentos de base que fornecem alimentos sustentáveis, diversos, livres de pesticidas e culturalmente adequados”, afirmou Maurício Alcântara, co-fundador do Instituto Regenera, em um evento paralelo à agenda oficial da COP30, nesta quarta-feira (12). Segundo ele, esses movimentos incluem lideranças de mulheres rurais, jovens e povos indígenas e quilombolas.

A narrativa é outra no painel intitulado “O que significa transição justa para o agro?”, realizado no pavilhão da CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil) na Zona Azul da COP30. A entidade, além disso, é patrocinadora “master” da Agrizone, espaço do agronegócio localizado a 2 km do pavilhão oficial na COP30

“Nós brasileiros fazemos um sistema de produção de grãos muito sustentável e ele não precisa, de fato, de uma transição; precisa de uma desmistificação, de colocar o que a gente tem na mesa e ver o que a gente tem de bom dos outros para agregar”, afirmou Andre Dobashi, vice-presidente da Aprosoja/MS (Associação dos Produtores de Soja do Mato Grosso do Sul) e presidente da comissão nacional de grãos da CNA.

Entrada da Agrizone, na COP30, em Belém do Pará (Foto: Hélen Freitas/Repórter Brasil)
Entrada da Agrizone, na COP30, em Belém do Pará (Foto: Hélen Freitas/Repórter Brasil)

Para críticos, a narrativa é enganosa. Ao mesmo tempo que promove tecnologias “verdes”, empresas e entidades do agronegócio estariam ligadas à expansão do desmatamento, ao uso intensivo de agrotóxicos e à emissão de metano pela pecuária. “Muitas das que se apresentam como parte da solução são as mesmas que alimentam os problemas estruturais”, disse à Repórter Brasil Marília Albiero, da ACT Promoção da Saúde, em reportagem publicada em outubro.

No evento paralelo de quarta-feira, Edna Kaptoyo, indígena Pokot do Quênia e representante da Aliança Internacional dos Povos Indígenas e Tribais das Florestas Tropicais, afirmou que as comunidades tradicionais já produzem alimentos sustentáveis, por meio da agroecologia, sistemas agroflorestais e proteção de nascentes.

No entanto, não recebem recursos na escala necessária para que essas experiências deixem de ser “nichos”. “Os financiadores se recusam a correr riscos, e não há risco sem aprendizado. Nós já temos a solução. O que precisamos é de financiamento e não de ideias”, queixou-se.

Suranjana Gupta, conselheira para resiliência comunitária na Huairou Commission, rede global de mulheres de base, concordou: “Como a gente define o financiamento para o tipo de trabalho de que estamos falando, para uma transição justa que mantenha as pessoas no centro?”. 

Modelo dominante custa 12 trilhões de dólares em danos indiretos por ano 

No Brasil, a agricultura familiar representa 76,8% dos estabelecimentos rurais, mas enfrenta enormes barreiras, como a dificuldade de acesso a crédito e a políticas de apoio. Para pesquisadores da Faculdade de Saúde Pública da USP (Universidade de São Paulo), combater a crise climática passa necessariamente por uma transição justa e sustentável do sistema agroalimentar. 

Em um artigo sobre sistemas alimentares e COP30, eles avaliam que o modelo dominante do sistema agroalimentar global já custa ao planeta e a seus habitantes cerca de 12 trilhões de dólares por ano em danos indiretos, algo como 10% do PIB mundial. 

Esses custos, que superam o valor de tudo o que o próprio sistema produz, incluem degradação ambiental, esgotamento de recursos hídricos e impactos na saúde pública.

Para pesquisadores da USP, transição justa significa necessariamente valorizar os saberes milenares sobre a natureza de diversidade de povos tradicionais e agricultores familiares (Foto: Matheus Alves/MST)
Para pesquisadores da USP, transição justa significa necessariamente valorizar os saberes milenares sobre a natureza de diversidade de povos tradicionais e agricultores familiares (Foto: Matheus Alves/MST)

Para os pesquisadores, falar em transição justa significa necessariamente valorizar os saberes milenares sobre a natureza de diversidade de atores, como povos tradicionais e agricultores familiares, e garantir que os benefícios e os custos das novas políticas, como incentivos e regulamentações, sejam repartidos de forma que não aprofundem as diferenças já existentes.

“Se não houver instrumentos específicos para esses segmentos, o cardápio de soluções tecnológicas para mitigação e adaptação pode, paradoxalmente, aprofundar as desigualdades, deixando esse grupo fora da transição para um modelo mais sustentável de produção”, escrevem os autores do artigo.

Grandes empresas querem fatia do financiamento climático

Em evento organizado pela JBS, na terça-feira (11), no pavilhão da CNI (Confederação Nacional da Indústria), grandes corporações de alimentos e insumos buscam protagonizar a transição dos sistemas alimentares. 

Felippe Albuquerque, diretor de sustentabilidade da Bayer para a América Latina, argumentou que agricultores parceiros da empresa já estariam “sequestrando mais carbono do que emitem” com protocolos de agricultura regenerativa construídos com a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) e universidades. 

A diretora de relações institucionais da Nestlé, Ana Carolina Carregaro, pediu “investimento público para fazer a transição”. Segundo ela, mudanças no modelo de produção de alimentos requer a inclusão de toda a cadeia de valor, inclusive os produtores que estão na ponta.

Já a CEO da Ajinomoto Brasil, Naoko Yamamoto, classificou a transformação do sistema como “uma nova oportunidade de negócio”. “O Brasil deve liderar essa mudança,” disse.

Em evento organizado pela JBS na COP30, grandes corporações de alimentos e insumos buscam protagonizar a transição dos sistemas alimentares (Foto: Hélen Freitas/Repórter Brasil)
Em evento organizado pela JBS na COP30, grandes corporações de alimentos e insumos buscam protagonizar a transição dos sistemas alimentares (Foto: Hélen Freitas/Repórter Brasil)

Ela se queixou, no entanto, do que chamou de desequilíbrio no financiamento da agenda climática. “Qual setor gera 22% das emissões globais, mas só recebe 5% dos recursos para lidar com a transição?”, questionou. 

Renato Costa, presidente da Friboi, uma das marcas da JBS, maior processadora de carnes do mundo, a ênfase deve estar no aumento da produção com menos recursos. “Produtividade faz parte da sustentabilidade”, pontuou.

Segundo ele, a empresa tem conseguido recuperar áreas e incluir novos e antigos fornecedores bloqueados com passivos ambientais e trabalhistas por meio de uma iniciativa chamada de “escritórios verdes”. “Eles auxiliam na regularização ambiental, reintroduzindo na cadeia produtiva tanto fazendeiros que estavam bloqueados como propriedades que não estavam na base da empresa.Entendemos que esse compartilhamento de informações tem impactado na redução de emissões.”

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