BELÉM (PA) — No intervalo da sessão do Tribunal dos Povos contra o Ecogenocídio, enquanto filhas de santo cantavam e benziam o auditório, a freira Jane Dwyer começou a dançar devagar. Era um movimento curto, discreto e acompanhado de um sorriso satisfeito.
Aos 85 anos, com mais de cinco décadas de vida como missionária no Brasil, ela parecia sentir naquele canto coletivo um tipo de energia que conhece bem: a força do povo reunido. Ao me ver observando seus passos, olhou para trás e disse: “Não é de cima que se muda as coisas. É o povo que faz a diferença”, apontando para as pessoas ali presentes.
Promovido durante a COP30 de Belém (PA) pela COP do Povo, o Tribunal dos Povos julgou simbolicamente 21 casos de violações socioambientais em todo o mundo.
Jane estava na sessão do tribunal na tarde de quinta-feira (13) ao lado da irmã Kátia Webster, ambas nascidas nos Estados Unidos e missionárias da congregação de Notre Dame de Namur. A mesma de Dorothy Stang, assassinada em 2005 por defender a reforma agrária no interior do Pará. Um trabalho que as duas seguem fazendo.
Jane e Kátia dividiram quase dez anos de missão com Dorothy e, após sua morte, assumiram a frente da CPT (Comissão Pastoral da Terra) em Anapu (PA). Desde então, vivem sob ameaças, percorrem assentamentos, acompanham conflitos e ficam ao lado dos camponeses para protegê-los.
Duas décadas depois do assassinato, a violência em Anapu permanece. Outras 21 pessoas foram executadas em conflitos ligados à terra, segundo dados da CPT, e a cidade segue entre as mais letais da Amazônia Legal.
Com 35 mil habitantes dispersos em um território do tamanho da Jamaica, Anapu é palco de grilagens, desmatamento e disputas armadas.
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‘O poder popular está se mexendo’
As freiras vieram a Belém para participar das atividades paralelas à COP30. Na quinta-feira, estavam acompanhando o tribunal organizado por movimentos sociais para denunciar violações ambientais e conflitos fundiários que não aparecem nos discursos oficiais.
Comunidades indígenas, quilombolas, ribeirinhas e camponesas apresentaram casos de expulsões, assassinatos, desmatamento e ataques a defensores da floresta em diversos países.
O tribunal paralelo acontece enquanto autoridades e lobistas disputam narrativas na zona azul, o espaço reservado às negociações diplomáticas sobre o clima. Para Jane e Kátia, faz muito mais sentido estar ali do que na COP oficial.
Kátia, que entrou para a congregação de Notre Dame de Namur em 1976, em Ilchester, Maryland, ensinou adolescentes no Brooklyn, em Nova York, antes de ser enviada ao Brasil, em 1984. Viveu nove anos no Maranhão, depois se mudou para a região da rodovia Transamazônica e se fixou no Pará, passando por Altamira, Itaituba e Anapu.
“O lado positivo da COP são esses eventos, como a COP do Povo, a Cúpula dos Povos, os encontros das mulheres. Ao ver todo esse pessoal, tenho a sensação de que o poder popular está se mexendo”, afirma.

Ela não fala com entusiasmo sobre anúncios de governo, pois diz não esperar nada. “Mas a energia, as ideias, as conversas vão voltar e influenciar as pessoas. É na base que se resolvem as coisas”, afirma.
Perguntada sobre a ausência na COP30 do presidente de seu país natal, Donald Trump, Kátia preferiu responder por outro caminho: “Minha família é da Califórnia, e, lá, o governador tem montado uma resistência”. Atualmente, ela brinca, prefere dizer que é californiana e não americana.
O governador californiano Gavin Newsom esteve na COP e ocupou o vácuo deixado pelo governo federal americano. Consolidou-se como antagonista de Trump, criticando a saída dos EUA do Acordo de Paris e o desmonte das políticas climáticas.
A presença de Newsom em Belém, onde participou de eventos oficiais e deu entrevistas defendendo ação climática e democracia, serviu para marcar posição diante da ausência do presidente. Sobre Trump, Kátia limitou-se a dizer: “Eu não me atrevo a explicar como escolheram ele de novo”.
‘Quando junta o povo, sempre vale a pena’
Jane, por sua vez, cresceu em Washington D.C., onde trabalhou com comunidades negras antes de vir ao Brasil. Em 28 de agosto de 1963, esteve na Marcha sobre Washington e ouviu Martin Luther King Jr. fazer o histórico discurso “I have a dream” (Eu tenho um sonho) diante de 250 mil pessoas.
Menos de dez anos depois, em 1972, decidiu vir ao Brasil “para trabalhar com os mais pobres nos lugares mais difíceis”. Viveu no Maranhão, no Ceará e na Paraíba até chegar a Anapu, em 1997, onde passou a acompanhar agricultores sem-terra.
No tribunal, ela observava atentamente cada depoimento. “Quando junta o povo, sempre vale a pena”, disse. Para ela, eventos assim ajudam os camponeses a entenderem outros conflitos além dos seus.
“Quando o povo sai das áreas onde vivem, eles conseguem ver que os problemas dos outros podem ser maiores do que os das realidades em que eles vivem”, compara. Sobre Donald Trump, não hesita em criticar: “Não quero nem ouvir falar. Ele não presta nem pouco e não faz falta nenhuma aqui”.
O Tribunal dos Povos é uma ação simbólica, sem poder legal. Mas, para as duas freiras, essa é a parte da COP que importa. A que reúne gente que perdeu parentes, territórios e florestas para o avanço de madeireiros, grileiros e grandes empreendimentos. A que se organiza apesar do medo. A que segue vivendo e resistindo mesmo sem palco nem manchete.
Quando a sessão recomeçou, Jane e Kátia se levantaram devagar e voltaram aos seus lugares na plateia. “Não é de cima que se muda as coisas”, repetiu Jane, antes de se sentar. “É o povo que faz a diferença.”
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