DE BELÉM (PA) – Para a líder indígena Alessandra Munduruku, “falta vontade política de Lula” para impedir que o rio Tapajós seja transformado em uma hidrovia industrial. O desejo dela e de seu povo, que vive no oeste do Pará e no norte do Mato Grosso, é que o presidente revogue o decreto 12.600/2025, assinado em agosto.
“O Tapajós não é mercadoria, o Tapajós não pode se negociar, é vida, somos nós”, disse Alessandra em entrevista à Repórter Brasil, na manhã de sábado (15), um dia depois do protesto que bloqueou por cerca de quatro horas a entrada da Blue Zone da COP30, em Belém, e impediu a passagem das delegações.
O grupo manteve os portões fechados até que o presidente da conferência e ministras do governo federal aceitassem dialogar. Após a reunião, os indígenas liberaram a entrada de delegações. A ação chamou atenção de países e observadores internacionais.
Na sexta-feira (14), a reportagem acompanhou a mobilização dos Munduruku desde a madrugada, quando partiram em dois ônibus em direção à Zona Azul, área restrita às autoridades na COP30. Quando chegaram e se depararam com os portões fechados e foram impedidos de entrar, ela disse: “Se a gente não entra, ninguém entra”.
Alessandra entende que o bloqueio da entrada obrigou o governo e a organização da conferência a agir. “A Marina [Silva, ministra do Meio Ambiente,] pode articular para ter uma agenda com o Lula”, afirmou.
Os representantes do governo disseram na conversa que somente o presidente Lula pode revogar o decreto. Por isso, o movimento indígena quer tratar diretamente com ele, porque, segundo Alessandra, “o Tapajós virou mercadoria quando se faz esse decreto”. O Decreto 12.600 de 2025 instituiu o Plano Nacional de Hidrovias e incluiu os rios Tapajós, Madeira e Tocantins como eixos prioritários de navegação.
“A gente sabe da importância do nosso rio, como surgiu o nosso rio, como ele é feito, qual é a cosmologia do rio para o povo Munduruku”, disse, reforçando que o Tapajós não é um mero curso d’água, mas um ser vivo e a base espiritual que sustenta o modo de vida Munduruku.
“Lula anda com os povos indígenas, demarca algumas terras, mas ainda não entendeu o significado da espiritualidade, não entendeu o local sagrado e a ancestralidade do rio”. Alessandra Munduruku, liderança indígena, na Marcha Mundial pelo Clima, na COP30
Nas cartas divulgadas pelo Movimento Ipereg Ayu, o decreto do governo federal é avaliado como uma abertura de caminho para novas dragagens, derrocamento de pedrais sagrados e para a ampliação acelerada de portos privados, transformando trechos do rio em corredor de exportação de soja.
Alessandra também criticou a forma como os governos priorizam investimentos. “As verbas muitas vezes vêm muito mais para o agronegócio do que para as populações tradicionais”, afirmou.
Ela descreveu os efeitos concretos da expansão da soja e da presença de portos no rio. Relatou um fluxo constante de carretas, barcaças atravessando o Tapajós, poeira de grãos caindo na água e peixes com cheiro ruim. Mencionou casos de expulsão de pescadores de áreas tradicionais e de pessoas indenizadas que, segundo ela, “muitas vezes já morreram com tristeza, com depressão”, após perderem seu lugar de origem.

Ferrovia e demarcações também estão na pauta de reivindicações
O protesto não se limitou à pauta das hidrovias. Os Munduruku também exigem o cancelamento dos planos para construção da Ferrogrão, afirmando que a implantação da aumentará o fluxo de grãos até Miritituba (PA), nas margens do rio Tapajós, e multiplicará o trânsito de barcaças.
Alessandra afirmou que a ação também tinha como objetivo pressionar o governo sobre a demarcação de terras. “Ficamos sabendo que o nosso território pode ser demarcado”, disse, avaliando que o ato abriu espaço para avanços.
A Terra Indígena Sawré Muybu teve a posse tradicional declarada em setembro de 2024, com 178 mil hectares, e a Funai contratou empresa para iniciar a instalação dos marcos de demarcação física. Ela afirma que espera que o governo finalize o processo e avance em outras áreas reivindicadas.
Além dos impactos logísticos, o território Munduruku convive com a contaminação por mercúrio causada pelo garimpo de ouro. A Repórter Brasil já mostrou crianças com malformações, atraso no desenvolvimento e falta de locomoção.
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