DE GILBUÉS, BAIXA GRANDE DO RIBEIRO E SANTA FILOMENA (PI) – A SLC Agrícola, uma das maiores produtoras de soja, algodão e milho do país, arrendou no sul do Piauí terras de fazendeiros acusados de grilagem por membros de comunidade tradicional da região. Eles respondem a processos judiciais por sobreposição da fazenda a territórios tradicionais da comunidade de Melancias e são citados em investigação que mapeia os impactos do agronegócio na região.
Uma área de 14,5 mil hectares da Fazenda Cosmos, dos empresários Ricardo Tombini e Eduardo Dall’Magro, foi anexada à propriedade de nome Parnaguá, um dos principais pólos de produção da empresa SLC em Santa Filomena (PI). O anúncio do arrendamento de terras foi emitido pela SLC, que possui longo histórico de fornecimento para Bunge e Cargill, em agosto de 2024, para produção de soja e algodão. O prazo do contrato é de 15 anos, iniciando na safra 2024/25 e terminando em 30 de agosto de 2039, conforme mostra investigação da Repórter Brasil em parceria com O Joio e o Trigo e o The Bureau of Investigative Journalism.
A reportagem identificou, comparando as coordenadas geográficas da propriedade com as indicadas em documento de licença ambiental, que se trata de parte da Fazenda Cosmos.
Questionada, a SLC informou que a parte arrendada da fazenda não está sobreposta à comunidade tradicional e que “para a compra ou arrendamento de novas áreas, a avaliação considera a possibilidade de sobreposição com territórios de grupos tradicionais”. A companhia explicou que caso identificada a sobreposição, a empresa não dá continuidade à negociação. “Nos termos contratuais de arrendamento, a SLC Agrícola assume a posse somente da poligonal arrendada. O restante do imóvel segue de posse e responsabilidade do proprietário da terra”, respondeu. Leia a nota na íntegra aqui.
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Região de conflitos
A região – que integra o Matopiba – é palco de conflitos fundiários que se estendem desde a década de 1980, quando a área começou a ser ocupada por empreendimentos agrícolas. Moradores de comunidade tradicional denunciam violência, degradação ambiental e contaminação de águas por agrotóxicos. A situação foi levada à Justiça em diferentes ações.
“Os conflitos nunca são pacíficos [na região]. Não são disputados no papel, mas na força”, afirma Juliana Martins Carneiro Nolêto, promotora de Justiça e coordenadora do GERCOG (Grupo Especial de Regularização Fundiária e de Combate à Grilagem) no Piauí. “O principal impacto para essas comunidades é a própria integridade física. Essas grilagens, geralmente, envolvem violência, tratores derrubando casas.”
Ações judiciais, um parecer técnico do MPF (Ministério Público Federal) e relatórios de organizações que atuam na área afirmam que a Fazenda Cosmos está empurrando comunidades, como a de Melancias, por meio de sobreposição da propriedade com áreas dentro dos quintais e moradias, num perímetro que, na prática, seria maior do que o da área originalmente registrada na matrícula do imóvel.
“O Piauí está regularizando a grilagem e não os territórios das comunidades tradicionais”, diz o MPF em ação civil pública que cobra a regularização fundiária das comunidades ao redor da Fazenda Cosmos. Na ação, o órgão afirma que o estado negociou terras com empresários sem verificar se estavam efetivamente ocupadas.
Tombini e Dall’Magro alegam, em processos judiciais, que compraram os 30,4 mil hectares de terras e que as comunidades estão invadindo a área de preservação ambiental da fazenda.
Enviamos questionamentos aos advogados dos dois donos da Fazenda Cosmos. Em resposta, Tombini afirmou, em conversa por telefone com a reportagem, que comprou a fazenda em 1995 e, desde então, a cerca da propriedade está no mesmo lugar. Ele afirma que a comunidade de Melancias está invadindo o perímetro da fazenda. Questionado sobre as outras questões envolvendo a fazenda, ele não comentou.
A compra pelos fazendeiros, entretanto, é contestada pelo Interpi (Instituto de Terras do Piauí) na Justiça, em ação que pede a devolução 2,8 mil hectares da Fazenda Cosmos, que estariam sobrepostos à comunidade Melancias, na análise do órgão.
A fazenda também tem áreas sobrepostas ao território do povo Akroá Gamella, de acordo com parecer do Interpi acessado pela Repórter Brasil. Um relatório da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) lista o CAR (Cadastro Ambiental Rural) da Cosmos entre os empreendimentos agrícolas que causam impactos aos indígenas por estarem sobrepostos às comunidades Morro d’Água da Gruta e Morro d’Água de Baixo, além de incidirem sobre a Área de Proteção Ambiental das Nascentes do Rio Uruçuí‑Preto. Desmatamento e descarte irregular de agrotóxicos estão entre os problemas identificados pelo órgão.
“Hoje, no Estado do Piauí, estamos enfrentando o que se chama de grilagem moderna. Eles chegam, se autodeclaram detentores do direito daquela terra preenchendo um cadastro ambiental rural, o que dá uma aparência de legalidade à propriedade”, analisa Nolêto. “Com isso, se sentem autorizados a invadir a comunidade, usando de ameaças, expulsando famílias, contaminando rios, contaminando colheitas”, diz.
Além das questões fundiárias, Dall’Magro foi condenado a três anos e quatro meses de prisão pela Justiça Federal do Piauí, em 2004, por manter 21 trabalhadores em condições análogas à de escravo na Fazenda Cosmos.
“A empresa arrendar uma área que está em conflito, sobre a qual há dúvidas de propriedade, é totalmente irregular. É como se você tivesse a cópia de um documento, que já está irregular. E aí você tira uma cópia da cópia: você arrenda”, analisa Carlos Augusto Ramos, engenheiro florestal e mentor de Crédito Socioambiental do Instituto Conexsus.



Melancias acusa fazendeiros de grilagem
Moradores identificam Melancias como uma comunidade brejeira, com cerca de 40 famílias, e com registros de ocupação da região desde o final do século 19, conforme informações do Interpi. Seus integrantes vivem de agricultura familiar, extrativismo e da criação de gado.
Em 2014, membros da comunidade entraram com ação judicial contra Tombini e Dall’Magro questionando o georreferenciamento realizado pelos fazendeiros. Eles alegam que a Cosmos alterou seus limites, incorporando áreas das famílias ribeirinhas e brejeiras. Na ação, afirmam que representantes dos fazendeiros realizaram medições sigilosas na área, passando por cima de terras ocupadas pela comunidade há mais de 50 anos, e que, a partir dessas medições, entraram com pedido de posse junto ao Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária).
A reportagem esteve na região para conversar com os moradores da comunidade e contou com o apoio da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos e o Coletivo de Povos e Comunidades. Os moradores não serão identificados na reportagem a pedido deles. Seus membros afirmam que a Cosmos adentrou em 50% da área de 979 hectares que detinham.
“Eles [fazendeiros] chegaram no modo mais sagaz, com a ilusão de ‘desenvolvimento’ — e a gente é que paga”, afirma uma pessoa que vive na comunidade. “O rio era riquíssimo em peixe, hoje não tem mais nada”, lamenta uma moradora. Segundo ela, a escassez está ligada ao uso de agrotóxicos e ao desmatamento, que “mudaram demais” o regime das águas. “A circulação era livre”, lembra. Agora, “a gente não pode trabalhar” nem “soltar o gado” — o que comprometeria o sustento das famílias e o modo de vida transmitido de geração em geração.
De acordo com um depoimento, a nova delimitação “passou por cima das casas”. Enquanto isso, as famílias afirmam que passaram a sofrer “ameaças muito fortes”. “Nosso estudo antropológico constata mais de 150 anos de existência”, diz um dos moradores. “A gente pegava buriti, pescava onde tivesse”, diz.
Estudo da AATR (Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais) afirma que a Cosmos alterou seus limites para chegar até o leito do rio. O estudo afirma que o georreferenciamento da fazenda foi feito para confirmar uma “grilagem” empreendida antes.
“Essas ações com georreferenciamento são casos típicos de uso da tecnologia para simular que a terra lhes pertence, mas não pertence”, opina Ramos.
Em 2014, os moradores entraram com ação judicial para tentar garantir a posse da terra e conseguiram medida liminar de proteção. A ação continua tramitando na Justiça..
Terras são reivindicadas pelo Estado
O conflito agrário tem origem na década de 1980. As terras da Cosmos foram vendidas pela Comdepi (Companhia de Desenvolvimento do Piauí), que na época era o órgão estadual responsável pelas questões fundiárias, para as empresas Taomina Agro-Florestal Ltda e Aletron Produtos Químicos Ltda. Essas companhias, por sua vez, venderam a propriedade para a Varig Agropecuária S.A. que, então, comercializou a fazenda para Tombini e Dall’Magro. O processo de venda pelo antigo Comdepi teria sido feito sem considerar as comunidades que já habitavam os territórios, afirmam o estudo da AATR e o relatório do MPF. Na Justiça, o Interpi reivindica 6,4 mil hectares de terras que seriam devolutas do Estado e estão sobrepostas à Melancias e outras comunidades, sendo 2,8 mil hectares da Cosmos.
No dia 15 de outubro de 2025, a Justiça julgou a ação improcedente, por entender que o Interpi “não produziu prova técnica capaz de sustentar suas alegações”.
Questionado pela Repórter Brasil, o Interpi informou que embora “figure como parte autora, a representação judicial do Estado do Piauí é competência exclusiva da PGE (Procuradoria-Geral do Estado), que define estratégias recursais e medidas processuais”.
Em outro processo, uma ação civil pública de 2020, o MPF cobra providências do Interpi e do Incra sobre a regularização fundiária das comunidades da região, incluindo Melancias, e ressalta que o Interpi “tem sido procurado desde 1992 para regularizar a situação da comunidade”. Em 2020, o MPF obteve decisão favorável, e a Justiça determinou o andamento das regularizações.
O Incra informou que “o Instituto de Terras do estado é o órgão responsável pela regularização”.
Terras indígenas sofrem impactos
Áreas da Cosmos também estão sobrepostas às terras ocupadas pelo povo Akroá Gamella, conforme documentos do Interpi e da Funai. Nessa região, eles ocupam as comunidades Vão do Vico, Morro D’Água da Gruta e Morro D’Água de Baixo e Brejo das Meninas.
Em relatório, a Funai afirma que o agronegócio desenvolvido na região está impactando os povos indígenas e pede providências aos órgãos estaduais. Entre os impactos citados está o desmatamento de áreas e os “cemitérios de veneno”, que são áreas usadas pelos empreendimentos agrícolas para destinação irregular de dejetos de agrotóxicos.
O órgão sinaliza em um mapa as localidades onde ocorreram os impactos. Uma das situações de desmatamento listadas têm coordenadas localizadas nas bordas da Cosmos, em divisa com outra propriedade contígua.
Após a elaboração do relatório, o MPF abriu um inquérito para “apurar a omissão estatal e a falta de consulta prévia em ações que impactam os territórios e o modo de vida dos povos indígenas no estado do Piauí”, conforme documento acessado pela Repórter Brasil.
Questionada, a Funai informou que “reconhece as situações de violência, degradação ambiental e contaminação de águas por agrotóxicos que têm acometido o povo Akroá-Gamella ao longo dos anos” e informa que vem trabalhando na reivindicação fundiária deste povo. Leia a resposta na íntegra aqui.
Procurada, a Bunge não esclareceu se compra matéria prima da Fazenda Cosmos ou Parnaguá II. A empresa afirmou que mantém “uma variedade de políticas, recursos e serviços para mitigar riscos” sociais e ambientais. Leia a resposta completa aqui. A Cargill não respondeu aos questionamentos encaminhados. O espaço segue disponível para futuras manifestações.
Esta reportagem foi apoiada pela Brighter Green.
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