DE BELÉM — No estande da Indonésia na COP30, ao lado da imagem de um rinoceronte-de-sumatra, surge o logotipo da Vale. No aeroporto, no aplicativo do Uber, nas ruas da capital paraense, em eventos culturais e na própria estrutura da conferência sobre o clima da ONU, a mineradora é onipresente.
“Praticamente em todo lugar de Belém que eu vou há uma propaganda de mineradora”, disse Isadora Canela, de Brumadinho (MG), que mediou o painel “Greenwashing, mineração e a batalha do imaginário”, realizado na manhã da última segunda-feira (17).
O debate reuniu também Thalia Silva, de Parauapebas (PA), e Itxalee Cinta Larga, de Rondônia. As três afirmaram ter se impressionado com a forte presença da Vale na conferência, enquanto violações que elas associam à mineração seguiriam sem solução em seus territórios.

Isadora responsabilizou a empresa pelos desastres de Mariana (2015) e Brumadinho (2019), pelos quais até hoje ninguém foi criminalmente condenado na Justiça brasileira. “A Vale tem um jeitinho de marketing que faz as pessoas se sentirem burras caso não acreditem no que ela está dizendo”, afirmou.
Na sexta-feira (14), em plena COP30, o rompimento da Barragem de Fundão, ocorrido em 2015 no município de Mariana (MG), ganhou o noticiário internacional. Sócia da Vale no empreendimento, a mineradora inglesa BHP foi condenada pelo Tribunal Superior de Justiça de Londres por um dos maiores desastres ambientais do Brasil, que deixou 19 mortos.
ASSINE NOSSA NEWSLETTER
Presença por toda a cidade
A contradição citada pelas ativistas aparece na própria infraestrutura relacionada à COP. O Parque da Cidade, sede do evento, foi construído com investimento de R$ 980 milhões da Vale, por meio do programa estadual Estrutura Pará, que permite converter parte da TFRM (Taxa de Fiscalização de Recursos Minerais) em obras executadas pelas próprias mineradoras.
A Vale financiou, contratou a construtora e gerenciou a obra. Pelo mesmo mecanismo, a empresa assumiu a expansão do Porto Futuro II, um dos legados da conferência para Belém, segundo o poder público.
No aeroporto internacional da capital paraense, painéis da Vale exibem o slogan “ver e viver as Amazônias”, e a esteira de bagagens está adesivada com a frase “Onde tem cultura, a Vale está”. Anúncios da mineradora aparecem até mesmo quando alguém pede um carro no aplicativo do Uber.


Em diferentes pontos da cidade, telas e outdoors exibiam campanhas institucionais da empresa. Paralelamente, a mineradora banca a Casa da Biodiversidade e Clima, instalada no Instituto Tecnológico Vale, que recebe debates sobre florestas, bioeconomia e transição energética.
A atuação se estendeu à programação cultural. O especial “Amazônia Live”, promovido pelos festivais de música Rock in Rio e The Town, teve patrocínio principal da Vale. O projeto contou com um show gravado com a cantora norte-americana Mariah Carey no rio Guamá, que corta Belém. O palco em formato de vitória-régia recebeu também artistas paraenses como Dona Onete, Joelma, Gaby Amarantos e Zaynara.
Outro evento gratuito, no estádio do Mangueirão, reuniu Ivete Sangalo e artistas locais, com abertura da Orquestra Vale Música Belém. A empresa lançou ainda uma série audiovisual sobre a Amazônia com Gaby Amarantos e Bob Wolfenson.
A Vale, além disso, financia boa parte da cobertura jornalística da COP30, com patrocínios a veículos como Folha de S.Paulo, O Globo, Valor Econômico, Veja, CBN e o paraense O Liberal.

Em nota, Vale defende suas ações na COP30
Em nota enviada à Repórter Brasil, a Vale afirma que mantém parcerias recorrentes com veículos jornalísticos com o objetivo de ampliar a visibilidade de seus posicionamentos em temas de interesse público.
Segundo a empresa, a COP30 foi o foco natural da estratégia de mídia deste ano e as ações patrocinadas seguem práticas comuns do mercado publicitário, sendo sempre identificadas como conteúdo comercial.
A mineradora diz que não interfere no trabalho editorial dos veículos e que as parcerias têm o objetivo de promover o debate sobre mudanças climáticas e o papel do setor privado na transição energética.
A companhia também defende o uso do programa Estrutura Pará, que permite converter até 40% da TFRM em obras executadas pelas próprias empresas. De acordo com a nota, a Vale entende essa cooperação com o poder público como forma de contribuir para um “legado duradouro” para Belém, listando a construção do Parque da Cidade e a expansão do Porto Futuro II como exemplos.
A empresa nega praticar greenwashing e afirma ter um “histórico sólido” de iniciativas socioambientais após quatro décadas de atuação na Amazônia. Diz, ainda, que contribui para a proteção de 1,1 milhão de hectares de florestas — sendo 800 mil na Amazônia —, que 97% dessas áreas permanecem preservadas e que apoia 60 mil pessoas por meio de iniciativas de bioeconomia e projetos sociais, além de gerar milhares de empregos diretos e indiretos no Pará (leia aqui o posicionamento na íntegra)
Jovem de Parauapebas relata impactos da atividade da Vale
No painel de segunda-feira, Thalia Silva, de 22 anos, afirmou que, diante da onipresença da Vale, não é possível discutir COP30 sem debater mineração. Ela contou que passou a estudar meio ambiente após o rompimento, em Mariana (MG), da barragem da Samarco, mineradora criada a partir de uma joint venture (consórcio) entre a Vale e a inglesa BHP. Além de matar 19 pessoas, o desastre provocou o colapso de toda a bacia do rio Doce, da nascente até a foz, no Espírito Santo.
“Quando a gente começa a estudar, percebe que a mineração da Vale faz diversas violações de direitos humanos”, disse. Ela citou também a estrada de ferro do complexo de Carajás, que atravessa municípios do Pará e do Maranhão, e que, segundo denúncias de movimentos sociais, teria provocado problemas de saúde e impactos urbanos.
“Quando a Vale chegou à região, houve um processo de migração de diversas pessoas ao local. A malha urbana se estendeu, a cidade passou a ter que suportar mais gente do que conseguia comportar”, diz.

A estrada de ferro foi um dos motivos que levou a Vale ao banco dos réus de um julgamento simbólico realizado por movimentos sociais na última quinta-feira (13). O “Tribunal Popular” aconteceu durante a Cúpula dos Povos, evento paralelo à COP30. “A poluição do ar é enorme, a saúde pública foi completamente devastada”, disse Antônia Flávia, uma das “testemunhas”. Ela vive no assentamento Piquiá da Conquista, em Açailândia (MA), localizado na rota da estrada.
Em nota enviada à Repórter Brasil na ocasião, a Vale afirmou ter repassado, juntamente com a Fundação Vale, R$ 45 milhões à construção do novo bairro, “entregue em outubro de 2024 às famílias que viviam no antigo bairro Piquiá de Baixo”. Afirmou, ainda, estar comprometida “com a integridade socioambiental” em suas operações, e que promove o diálogo com as comunidades vizinhas às operações (Leia aqui a nota na íntegra).
:: Leia também: Povos da Amazônia ‘julgam’ mineradoras por casos de contaminação e desmatamento no Pará
No evento realizado na última segunda-feira, Thalia disse que a chegada da mineradora na região teria resultado, entre outros problemas, no aumento de casos de violência de gênero. “A vinda de muitos homens para trabalhar na mineração causou uma série de violências, principalmente contra meninas e mulheres”, alertou.
“A realidade é que a gente não tem saneamento básico. Tem a parte de Carajás, que é toda estruturada, mas a parte de Parauapebas não é. A gente tem poucos recursos para o tanto que a empresa explora o território”, reclamou.
Ela mencionou ainda o caso do povo Xikrin do Cateté, que teria sido exposto a metais pesados em decorrência de operações da Vale no sudeste do Pará. O MPF (Ministério Público Federal) do Pará chegou a ajuizar uma ação civil pública contra a mineradora, a União e o estado do Pará. A Vale nega
Em posicionamento enviado à Repórter Brasil em fevereiro, quando a ação foi ajuizada, a Vale negou a relação de suas operações com a contaminação do rio Cateté e declarou que o tema já foi “amplamente analisado” pela Vara Federal de Redenção (PA).
“Estudos conduzidos por peritos judiciais independentes concluíram que as operações da Vale não são a fonte de contaminação do Cateté. Os documentos são públicos e estão disponíveis para consulta. Além disso, a Vale monitora regularmente as condições da água no entorno dos seus empreendimentos para resguardar as comunidades locais. Por fim, a companhia lembra que há inúmeras atividades de garimpo ilegal na região”, disse a mineradora.
:: Leia também: MPF vê ‘assinatura química’ da Vale em contaminação dos Xikrin no Pará ::

Executivos da empresa, no entanto, defenderam a mineração durante a COP30. Em painel promovido pelo Consórcio de Desenvolvimento da Amazônia Legal, em 12 de novembro, Grazielle Parenti, vice-presidente executiva de Sustentabilidade da Vale, afirmou que o desafio é “trazer o desenvolvimento dos territórios” e construir “uma rede de prosperidade ao redor”, dizendo que cada região tem “sua particularidade”.
Dois dias antes, em 10 de novembro, Marco Braga, vice-presidente do Projeto Novo Carajás, declarou: “A mineração é top, com certeza absoluta. Vamos fazer com que as comunidades do entorno também sejam top, crescendo junto com a gente, com a transição energética”. Ele fez parte de um painel promovido pela Federação das Indústrias do Estado do Pará.
:: Leia também: Inspiradas no ‘agro é pop’, Vale e Hydro promovem ‘mineração é top’
Em entrevista à Repórter Brasil após o painel sobre greenwashing e mineração de segunda-feira, Thalia disse sentir uma “guerra desigual” na disputa de narrativas: “Eu me sinto cansada, chateada e com medo, porque parece que a gente é refém. Qualquer lugar que você vai, sempre vai ter alguma coisa da empresa. Nunca tem uma saída diferente, porque eles não nos dão essa escolha”.
Para ela, o patrocínio a centros culturais e grandes shows ajuda a consolidar a imagem da mineradora como benfeitora, ao mesmo tempo em que apaga conflitos agrários e denúncias de violações nos territórios. “A mineração não é solução para o nosso futuro. Se a gente continuar explorando como sempre foi, as pessoas vão continuar tendo seus direitos violados”, acredita.
Leia também