DE BELÉM — As declarações da CEO da Sigma Lithium, Ana Cabral, durante a COP30, provocaram reações de moradores do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais. Prefeitos, parlamentares e organizações locais repudiam a afirmação de que trabalhadores da região seriam “mulas de água” e parte de uma “geração perdida”.
As falas da executiva, feitas em entrevista ao canal norte-americano CNBC na zona azul da conferência da ONU, também motivaram pedidos de esclarecimento à empresa e manifestações formais na Assembleia Legislativa de Minas Gerais.
“Falar que nós somos geração perdida? Eu sempre trabalhei e nunca deixei de trabalhar. Nunca fomos geração perdida”, afirma um morador da comunidade Piauí Poço Dantas, na zona rural de Araçuaí, vizinha à operação da empresa. Ele pediu para não ser identificado, por temer retaliações.
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Na entrevista, Cabral disse que a Sigma teria treinado 43 moradores locais que, segundo ela, eram “ex-mulas de água”: carregavam água na cabeça e trabalhavam em bananais antes de serem contratados pela empresa.
“Nós treinamos aquela geração perdida do Vale [do Jequitinhonha], que eram mulas de água, [uma vez] que as crianças que não tinham escola carregavam água na cabeça. Elas passavam o dia sem aula, carregando água da cisterna pública para casa, da casa para a cisterna pública”, declarou a executiva. Em agosto, ela já havia dado declarações semelhantes quando recebeu uma homenagem na Assembleia Legislativa de Minas Gerais.
Em uma carta aberta, o prefeito de Araçuaí, Tadeu Barbosa, escreveu que a imagem de “mulas de água” pertence a um passado distante e não reflete a realidade atual do município, onde nenhuma criança deixa de estudar para carregar água. A prefeitura de Itinga também se manifestou, dizendo que faltou respeito com as crianças e trabalhadoras. Já a prefeitura de Vargem da Lapa classificou as declarações como “inaceitáveis”.
Executiva da Sigma Lithium deu declarações semelhantes em agosto
A Sigma Lithium Corporation é uma mineradora canadense listada nas bolsas de valores de Toronto (Canadá) e Nasdaq (EUA), e há uma década explora minérios no Vale do Jequitinhonha. Os municípios de Itinga e Araçuaí, a cerca de 600 quilômetros de Belo Horizonte, abrigam as principais operações. Desde 2023, a empresa extrai e processa lítio na região.
A CEO Ana Cabral é descrita em perfil da revista Forbes como uma executiva com trajetória no mercado financeiro internacional, com passagens por Goldman Sachs, Credit Suisse e Merrill Lynch.
Em agosto, no discurso de aceitação do título de Cidadã Honorária de Minas Gerais, na Assembleia Legislativa do estado, ela fez declarações semelhantes às da entrevista à CNBC. Disse, ainda, que as crianças do Vale do Jequitinhonha passaram a ter “esperança” em razão das oportunidades criadas pela mineradora.

Um requerimento protocolado pelo deputado estadual Jean Freire (PT) solicita que a Assembleia Legislativa publique uma manifestação de repúdio à CEO por ela “retratar o Vale de maneira que não condiz com a verdade e de forma desrespeitosa”.
A presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia, deputada Bella Gonçalves (Psol), afirmou que as declarações de Cabral demonstram desconhecimento da realidade da região. Segundo ela, comunidades de Araçuaí e Itinga já desenvolviam atividades produtivas antes da instalação da empresa, e parte delas se opôs ao empreendimento devido ao risco que entendiam haver às fontes de água da região.
“É muito triste que o espaço oficial da COP30 seja palco para as empresas tentarem se promover com base numa narrativa mentirosa e preconceituosa”, afirma Carolina de Moura, coordenadora de gênero e clima do Instituto Cordilheira. Ela descreve a fala da executiva como violenta e lamentável.
Nesta quarta-feira (19), a Sigma postou um vídeo nas redes sociais em que reafirma as declarações de sua executiva. “Fingir que está tudo maravilhoso seria uma atitude mais fácil, barata e menos trabalhosa para a Sigma”, diz a postagem.
Procurada, a assessoria de imprensa da mineradoranão retornou até a publicação desta reportagem. O espaço segue aberto a manifestações.
Narrativa sustentável na COP contrasta com denúncias de potenciais impactos
Na última sexta-feira (14), o diretor de relações internacionais e desenvolvimento de negócios da Sigma, Daniel Abdo, participou de um painel na COP30 promovido pelo Ibram (Instituto Brasileiro de Mineração).
Ele afirmou que “os minerais críticos são o tema da vez e o Brasil em particular é abençoado”. Disse também que a empresa busca oferecer oportunidades para moradores de comunidades vizinhas crescerem junto com a operação. Ele não mencionou diretamente a polêmica envolvendo a CEO Ana Cabral.

O discurso da Sigma está alinhado com o que dizem outras grandes mineradoras durante a conferência da ONU. Os chamados minerais críticos e estratégicos, como lítio, terras raras e cobre, são vistos como fundamentais para a transição energética em razão de seus usos em produtos de tecnologia, como chips e baterias.
“O lítio e outros minerais ditos estratégicos na verdade são minerais de sacrifício que vão causar a expansão da fronteira extrativista”, alerta Carolina de Moura, do Instituto Cordilheira
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O discurso de sustentabilidade e respeito às comunidades vizinhas às operações da empresa contrasta com as denúncias de associações de povos tradicionais e órgãos públicos sobre os potenciais impactos negativos da exploração de lítio.
No início de setembro, o MPF (Ministério Público Federal) enviou uma recomendação à Agência Nacional de Mineração solicitando a suspensão e revisão das autorizações de pesquisa e extração de lítio em Araçuaí. A medida reforça a necessidade da consulta livre, prévia e informada às comunidades afetadas que, segundo o órgão, não foram devidamente ouvidas antes da liberação dos projetos.
Além das denúncias de potenciais impactos no território, a Sigma promoveu lítio “carbono zero” extraído em Minas Gerais cuja emissão de poluentes foi compensada com um projeto de carbono na Amazônia suspeito de desmatamento, grilagem de terras públicas, corrupção e outros crimes.

O caso foi revelado em outubro pela Repórter Brasil e pelo CLIP (Centro Latinoamericano de Investigación Periodística), no âmbito do projeto “Lítio em Conflito”, que reuniu dez veículos da América Latina para entender as controvérsias que cercam o negócio de lítio na região.
Em nota enviada na ocasião, a Sigma Lithium afirmou que não utiliza créditos de carbono desde 2024, quando decidiu reduzir as suas próprias emissões de poluentes, “substituindo os mecanismos de compensação por ações concretas de descarbonização e eficiência ambiental”. A companhia não detalhou, porém, as medidas adotadas.
“A empresa reafirma seu compromisso com uma mineração de baixo impacto ambiental, baseada em inovação tecnológica, saúde, segurança e responsabilidade socioambiental, alinhada com os objetivos globais de descarbonização”, diz a nota. (Leia na íntegra)
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