Estudo que atestava segurança de glifosato é despublicado após 25 anos

Artigo que minimiza os riscos carcinogênicos do glifosato foi retirado de circulação após revelações de possível influência indevida da patrocinadora da pesquisa, a Monsanto (Bayer), na redação final, além de ausência de dados que sustentem as conclusões, conflitos de interesse envolvendo os autores, entre outros problemas éticos
Por Diego Junqueira

UM ARTIGO CIENTÍFICO publicado há 25 anos sobre a segurança do glifosato, agrotóxico mais usado no mundo, foi oficialmente despublicado pela revista norte-americana Regulatory Toxicology and Pharmacology. Entre os motivos alegados estão questões éticas, falta de integridade científica e desconfiança sobre os resultados da pesquisa.

Publicado em 2000 por Gary M. Williams, Robert Kroes e Ian C. Munro, o estudo concluiu que o glifosato não representava risco de desenvolvimento de câncer, exercendo influência em debates regulatórios e de saúde sobre uso de agrotóxicos, inclusive no Brasil. 

A despublicação reforça as suspeitas sobre os danos da substância à saúde humana e abre caminho para novos questionamentos à comercialização do produto, segundo especialistas ouvidos pela Repórter Brasil. O glifosato é a base de mais de cem produtos disponíveis no mercado, com uso em plantações e também em jardins.

A retratação de um artigo, como é dito no meio acadêmico, significa que o estudo tem seus resultados invalidados pela revista científica. Em comunicado desta sexta-feira (5), o editor-chefe da Regulatory Toxicology and Pharmacology, Martin van den Berg, destaca várias “preocupações” e “problemas críticos” no estudo, como falta de clareza sobre os verdadeiros autores do texto e ausência de menção ao envolvimento de funcionários da Monsanto (hoje parte do grupo Bayer) na redação do artigo. 

A Monsanto foi uma das patrocinadoras do estudo, fornecendo materiais e colaborando com a análise de resultados, conforme declararam os autores na pesquisa. Porém, e-mails internos da fabricante expostos em 2019 — no caso conhecido como “Monsanto Papers” — sugerem que funcionários da Monsanto contribuíram para a redação do artigo sem o devido reconhecimento, o que levanta dúvidas sobre a independência da pesquisa e a integridade da ciência que embasa as regulamentações de produtos como o Roundup, da Bayer.

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Outro ponto central do artigo que levou à despublicação foi a conclusão de que o glifosato e o Roundup não seriam carcinogênicos. O resultado, porém, baseou-se exclusivamente em estudos não revisados por pares e fornecidos pela própria Monsanto. Segundo o comunicado da revista, o artigo falhou ao não considerar uma série de estudos que já haviam sido publicados à época e que contradiziam suas conclusões, tornando a análise falha e unilateral.

A toxicologista Karen Friedrich, do Grupo Temático de Saúde e Ambiente da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva), lembra que a prática de “ghostwriting” é citada diversas vezes nos Monsanto Papers, dando conta que funcionários da Monsanto teriam escrito outros artigos assinados posteriormente por cientistas e publicados em revistas científicas. 

Além das dúvidas sobre a autoria e a possível influência corporativa, investigações indicam que os autores podem ter recebido compensações financeiras da Monsanto, segundo o comunicado da revista, o que não foi divulgado no artigo.

Ainda segundo a revista, a despublicação foi feita após uma “análise cuidadosa” das diretrizes da COPE (Committee on Publication Ethics), que regem o comportamento acadêmico, e também após seu editor-chefe tentar, sem sucesso, obter esclarecimentos do único autor ainda vivo, Gary M. Williams. 

Artigo publicado no ano 2000 e que era usado para sustentar a segurança do glifosato agora aparece com a mensagem "Retracted" (Foto: Reprodução)
Artigo publicado no ano 2000 e que era usado para sustentar a segurança do glifosato agora aparece com a mensagem “Retracted” (Foto: Reprodução)

Estudo foi considerado para manter registro do glifosato válido no Brasil

O artigo de Williams foi um dos estudos considerados durante o processo de reavaliação do glifosato no Brasil, iniciado em 2008 e encerrado em 2019, quando a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) concluiu que o agrotóxico não causava prejuízos à saúde, mantendo a permissão de comercialização no Brasil. 

Em 2015, ainda durante o processo de reavaliação no Brasil, a Iarc (Agência Internacional de Pesquisa em Câncer, na sigla em inglês), ligada à OMS (Organização Mundial da Saúde), classificou a substância como “provavelmente cancerígena” em humanos. 

No ano seguinte, a Anvisa contratou dois consultores externos para avaliar as evidências científicas nos testes realizados em animais e também em seres humanos. No parecer de saúde humana, o estudo de Williams, agora despublicado, foi citado cinco vezes pela analista.

Em seu próprio parecer técnico, a Anvisa destacou que a consultoria externa “concluiu que não foram encontradas evidências suficientes da associação entre a exposição ao glifosato e tumores sólidos, leucemia, linfoma de Hodgkin, mieloma múlplo ou LNH”.

“O parecer externo usado pela Anvisa durante a reavaliação cita esse estudo do ano 2000, que é antigo e tem várias falhas metodológicas, para desqualificar outros estudos que apontavam o glifosato como cancerígeno”, diz Friedrich.

Ainda durante o processo de reavaliação, a Bayer teria feito uma lista de quatro cientistas brasileiros que poderiam atuar contra eventuais restrições ao herbicida. Tratava-se de uma estratégia comum, segundo os documentos da empresa. O caso foi revelado no ano passado pela Repórter Brasil, após análise inédita dos “Monsanto Papers”. 

Ativistas protestam contra a fabricante de agrotóxicos Bayer, na entrada da Agrizone, espaço montado pela Embrapa e pela CNA dedicado ao agronegócio durante a COP (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)
Ativistas protestam contra a fabricante de agrotóxicos Bayer, na entrada da Agrizone, espaço montado pela Embrapa e pela CNA dedicado ao agronegócio durante a COP (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

Bayer enfrenta mais de 100 mil ações de vítimas do glifosato nos EUA

Os Monsanto Papers vieram a público em 2019, durante uma leva de processos judiciais contra o glifosato nos Estados Unidos, onde a Bayer já desembolsou mais de 11 bilhões de dólares (R$ 59 bilhões) para encerrar cerca de 100 mil processos de vítimas do seu campeão de vendas, o Roundup, à base de glifosato. 

Há pelo menos outras 61 mil ações pendentes de julgamento, segundo um escritório de advocacia norte-americano que acompanha os casos.

No Brasil, um levantamento inédito da Repórter Brasil apontou ao menos 1.006 processos judiciais de pessoas afetadas pela exposição aos agrotóxicos, a maioria trabalhadores.

A pesquisadora Karen Friedrich ressalta que os conflitos de interesse sempre foram presentes no estudo e que por isso ele já não deveria ter sido considerado pela Anvisa durante o processo de reavaliação.

“A Anvisa deveria colocar o glifosato em reavaliação novamente, porque as pessoas estão adoecendo e morrendo por conta desse agrotóxico”, afirma a pesquisadora, ressaltando que a despublicação do artigo é uma novidade científica que permitiria a reabertura do caso na Anvisa.

Para Alan Tygel, membro da coordenação da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida, a despublicação do artigo “coloca em xeque o próprio resultado da reavaliação da Anvisa”. 

“A reavaliação de agrotóxicos no Brasil deve ser iniciada quando há informações científicas novas sobre os produtos que estão em uso”, afirma. Ele defende também que a venda desses agrotóxicos seja liminarmente suspensa, de modo a proteger a saúde das pessoas.

O que dizem a Bayer e a Anvisa?

A Repórter Brasil procurou a Anvisa no início da tarde desta sexta-feira e aguarda resposta. O texto será atualizado assim que o posicionamento for recebido.

Já a Bayer disse que o glifosato tem sido usado “com segurança e sucesso em todo o mundo há mais de 40 anos”, segundo nota enviada pela empresa. “Os principais órgãos reguladores concluíram repetidamente que nossos produtos à base de glifosato podem ser usados com segurança conforme as instruções de bula e que o glifosato não é cancerígeno”.

O texto destaca que a segurança do produtor foi reafirmada no Brasil e na União Europeia. “Essas decisões — tomadas com base em evidências científicas, cujos estudos levaram vários anos, envolvendo ampla consulta pública — são consistentes com as conclusões da Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos (EPA), da Autoridade Europeia de Segurança Alimentar (EFSA), da Agência Europeia de Produtos Químicos (ECHA), e das principais autoridades de saúde na Austrália, Coréia, Canadá, Nova Zelândia, Japão e de outras partes do mundo”.

A nota diz ainda que os herbicidas à base de glifosato estão entre os mais estudados e que ele é usado não só no controle de ervas daninhas, “mas também para melhorar as práticas de cultivo, reduzir as emissões de gases de efeito estufa, preservar mais áreas de vegetação nativa e fornecer alimentos suficientes”.

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Glifosato é a substãncia base de mais de cem marcas de agrotóxicos à venda no Brasil, sendo usado em lavouras e também em jardins. O Roundup, da Bayer, é um dos mais vendidos no mercado (Foto: Aqua.Mech/Flickr)
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