Justiça usa ‘calculadora de carbono’ e impõe multas por dano climático na Amazônia

Sentenças pioneiras reconhecem emissões de CO₂ por desmatamento ilegal na Amazônia; mais de 50 ações já foram ajuizadas pelo Ministério Público Federal com base em cálculo de impacto climático
Por Daniel Camargos | Edição Carlos Juliano Barros

UM FAZENDEIRO foi condenado pela Justiça Federal a pagar R$ 44,7 milhões por danos climáticos causados pelo desmatamento de mais de 2 mil hectares de floresta nativa no sul do Amazonas. 

Publicada em setembro do ano passado, a sentença de primeiro grau da 7ª Vara Federal do estado, que ainda pode se revista em instâncias superiores, afirma que a derrubada ilegal da vegetação em Apuí (AM) provocou a emissão de 1,3 milhão de toneladas de dióxido de carbono (CO₂).

O valor da indenização por dano climático foi calculado com base em metodologia desenvolvida pelo Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) e pela Abrampa (Associação Brasileira de Membros do Ministério Público de Meio Ambiente). 

Mais de 50 ações civis públicas já foram propostas pelo MPF (Ministério Público Federal) usando a mesma metodologia, segundo o cientista Paulo Moutinho, cofundador do Ipam.

Conhecida como “calculadora de carbono”, a ferramenta considera estimativas do SEEG (Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa) e diretrizes do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) da ONU para converter a área desmatada em toneladas de CO₂ lançadas na atmosfera, atribuindo um valor monetário ao dano climático.

“Toda vez que conseguimos impor, por meio dessas sentenças, pagamentos de valores significativos que interferem diretamente no bolso do infrator, isso inibe [novas irregularidades ambientais], com certeza”, avalia Alexandre Gaio, coordenador do projeto Abrampa pelo Clima e promotor no MP-PR (Ministério Público do Estado do Paraná). 

Gaio explica que o valor da indenização climática está sendo calculado com base em US$ 5 por tonelada de carbono, parâmetro adotado pelo Fundo Amazônia e referendado pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça) em seu Protocolo de Julgamento com Perspectiva Ambiental, aprovado em maio de 2023.

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CNJ recomenda adoção de ‘calculadora de carbono’ em todo o país

A partir da nota técnica elaborada pela Abrampa e pelo Ipam, o CNJ passou a recomendar a aplicação da metodologia em todo o país. 

A recomendação orienta magistrados a considerarem os impactos climáticos como categoria jurídica e adota a metodologia como referência técnica.

“Me parece que é um valor comedido. É o único usado oficialmente pelo Estado brasileiro, mas é inferior a outras estimativas sobre o custo social do carbono, que consideram também os danos sociais e econômicos das emissões”, explica o promotor Alexandre Gaio.

Em outro caso semelhante, a 1ª Vara Federal de Manaus condenou três réus por desmatamento de mais de 3 mil hectares na Gleba Pau Rosa, também em Apuí. A sentença reconheceu a emissão de 1,99 milhão de toneladas de CO₂ e determinou pagamento de R$ 101,4 milhões por danos ambientais e climáticos.

O promotor explica que as ações civis por dano climático não substituem a atuação administrativa ou penal, mas se complementam. “A responsabilidade civil é objetiva. Basta comprovar o nexo de causalidade. Não precisa demonstrar dolo ou culpa”, justifica Gaio. Esse tipo de ação se soma à multa ambiental e à possível responsabilização criminal, podendo ser mais célere e efetiva na cobrança. 

Gaio aponta como desafios a articulação entre órgãos de controle, a sistematização de informações sobre condenações e a intensificação da responsabilização dos autores do desmatamento, inclusive com bloqueios e embargos [interdição de áreas]. 

“Não é possível mais se trabalhar com desmatamento de modo individualizado. A atuação precisa ser integrada e planejada”, afirma.

Imensidão de florestas públicas não destinadas são alvo de grileiros

Grande parte dessas ações se concentra em FPNDs, as florestas públicas não destinadas que pertencem à União ou aos estados, mas que ainda não foram formalmente convertidas em reservas ambientais, territórios de povos tradicionais ou concessões para exploração econômica. 

Essas áreas somam 56,5 milhões de hectares na Amazônia Legal, segundo dados do Serviço Florestal Brasileiro. Desses, cerca de 30 milhões de hectares já têm registros no CAR (Cadastro Ambiental Rural). Boa parte apresenta indícios de ocupação irregular, segundo o Ipam, como mostrou reportagem publicada pela Repórter Brasil.

Cerca de 30 milhões de hectares dessas florestas estão cobertos por registros do CAR com indícios de sobreposição ou de ocupação irregular. Criado como ferramenta de monitoramento ambiental, o CAR vem se transformando em instrumento de grilagem [apropriação ilegal de terras públicas], segundo especialistas ouvidos pela reportagem. 

O padrão se repete: a floresta é derrubada, depois é convertida em pastagem e, finalmente, abandonada ou vendida com aparência de uso produtivo.

Dados do Observatório de Florestas Públicas mostram que as FPNDs foram o epicentro do desmatamento na Amazônia entre 2019 e 2022, concentrando até metade da área destruída em alguns anos. Embora os números tenham caído em 2023 e 2024, essas áreas ainda respondem por 25% a 30% do desmatamento na região. 

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