![Imagem usada nos materiais de propaganda governamental alusiva aos “25 anos Chico Mendes vive mais”. Nela aparecem o governador Tião Viana e sua esposa Marluce ao lado das estátuas de Chico Mendes e seu filho Sandino, situada na Praça Povos da Floresta, Rio Branco (AC). Fotos: Sérgio Vale/Secom](https://reporterbrasil.org.br/wp-content/uploads/2013/12/secom_acre_foto_SV_2517_29.jpg)
“Quando te vi com essa camiseta pensei que era mais um propagandista do governo do Acre”, disse-me um dos participantes do II Congresso da Comissão Pastoral da Terra (CPT) realizado em Goiás no ano de 2005. O comentário me deixou perplexo porque a camiseta em questão era branca e tinha estampada, em sua frente, uma imagem com o rosto de Chico Mendes, sobreposta com a chamada: “Chico Mendes Vive” e, logo a seguir, o texto escrito por ele no ano de seu assassinato “Atenção jovem do futuro, 6 de Setembro do ano de 2120, aniversário ou centenário da Revolução Socialista Mundial, que unificou todos os povos do planeta num só ideal e num só pensamento de unidade socialista que pôs fim a todos os inimigos da nova sociedade. Aqui fica somente a lembrança de um triste passado de dor, sofrimento e morte.Desculpem… Eu estava sonhando quando escrevi estes acontecimentos; que eu mesmo não verei mas tenho o prazer de ter sonhado”.
acriano foi destituído de seu conteúdo político revolucionário e transformado em um pragmático “ambientalista” |
Minha perplexidade deveu-se ao fato de não estar estampado na dita camiseta nenhuma logomarca identificando o governo do Acre. Ademais, existia outro detalhe fundamental: não havia e não há no vocabulário e nas ações do governo do Acre absolutamente nada que tenha proximidade com esse sonho de Chico Mendes. Ao contrário, o Chico Mendes evocado pelo governo acriano foi destituído de seu conteúdo político revolucionário e transformado em um pragmático “ambientalista”, em consonância com todo o complexo de organizações da sociedade civil articulado em torno da ideologia do desenvolvimento sustentável. Às vezes, também o transformam em vidente, quando usam seu nome para justificar as perversas políticas voltadas para o aprofundamento da mercantilização da natureza. Dizem, dentre outras barbaridades, que Chico Mendes seria a favor do manejo florestal madeireiro, dos famigerados Pagamentos por Serviços Ambientais – PSA, quando sabemos que essas proposições emergiram após o seu assassinato.
Enfim, o fato que relatamos ilustra com muito vigor o monumental poder da imagem e a sofisticação crescente com que tal poder é manipulado. O Governo do Acre tem usado de forma primorosa esse recurso, logrando “colar” com maestria a imagem de Chico Mendes ao seu projeto político, afirmando que estaria realizando os “seus ideais” – como mostra Maria de Jesus Morais no seu artigo “Usos e abusos da imagem de Chico Mendes na legitimação da “economia verde”, no Do$$iê Acre: O Acre que os mercadores da natureza escondem, documento apresentado em 2012 durante a Cúpula dos Povos, no Rio de Janeiro.
![Projeção no Palácio Rio Branco. Foto: Victor Agusto/Secon](https://reporterbrasil.org.br/wp-content/uploads/2013/12/acre.jpg)
Imagem e poder
Nesse sentido, a manipulação da imagem de Chico Mendes atua como um antídoto contra a memória de Francisco Alves Mendes Filho. Enquanto a memória revela obstinado desejo de transformação de uma realidade marcada pela exploração, injustiça e destruição, a imagem manipulada volta-se para o ocultamento dessa realidade. Mais do que isso, os novos mapas com ilustrações do “Zoneamento Econômico Ecológico”, que não passam de adaptações jurídicas e institucionais inebriadas com o vocabulário subjacente à ideologia do desenvolvimento sustentável, são usados para apresentar o Acre como “modelo de economia verde” a ser replicado em outras regiões do mundo.
de um obstinado desejo de transformação de uma realidade marcada pela exploração, injustiça e destruição |
Essa separação e/ou adaptação entre imagem e seus significados tem sido usada também em “Nuestra América” desde os primórdios da colonização europeia, como lembra Serge Gruzinski em seu livro “A guerra das imagens – de Cristóvão Colombo a ‘Blade Runner’ (1492-2019)”. De acordo com ele, desde que Colombo desembarcou no novo mundo a imagem foi utilizada para fins de dominação. Sem demora, diz o referido autor, os recém-chegados se perguntaram sobre a natureza das imagens que possuíam os indígenas. “Prontamente, a imagem constituiu um instrumento de referência, e logo de aculturação e de domínio, quando a igreja resolveu cristianizar os índios desde a Flórida até a terra do fogo. A colonização europeia aprisionou o continente em uma armadilha de imagens que não deixou de ampliar-se, desenvolver-se e modificar-se ao ritmo dos estilos, das políticas, das reações e oposições encontrados”, escreve Gruzinski.
É precisamente nesta perspectiva analítica que interpretamos a intencionalidade dessa separação entre “Chico e Francisco”. Isto é, apropriar-se de uma imagem e destituí-la de seu sentido original para transformá-la em poderoso instrumento de legitimação do poder. Obviamente, ela necessita manter alguns nexos com uma memória “devidamente adaptada” aos fins políticos de cada momento, conforme explicitado anteriormente.
![Imagem de sindicalista foi projetada no Palácio Rio Branco durante as comemorações. Foto: Victor Augusto/Secom](https://reporterbrasil.org.br/wp-content/uploads/2013/12/chico-palacio.jpg)
No decorrer das celebrações dos “vinte anos sem Chico Mendes”, em 2008, mostramos os usos e abusos da imagem desse líder sindical no artigo “Movimentos sociais na Amazônia brasileira: vinte anos sem Chico Mendes”. Destacamos, entre outros pontos, que as proposições do Movimento Sindical no “tempo de Chico Mendes” foram apropriadas e transmutadas na sua negação. Portanto, não estava em curso uma suposta continuidade e, sim, uma ruptura com esse legado. Agora, faremos um exercício oposto: realçar os traços de continuidade no “estilo de desenvolvimento” em curso no Acre.
Legado
Em uma de suas últimas entrevistas , registrada no livro “O Testamento do Homem da Floresta Chico Mendes por ele mesmo”, de Cândido Grzibowski, ele disse o seguinte:
“Em princípio teve alguns momentos que houve um avanço considerável do governo na questão ecológica, no Conselho Nacional dos Seringueiros, na luta dos seringueiros. Mas, em seguida, nós começamos a desconfiar e começamos a descobrir que o governo do Estado estava fazendo um discurso ecológico para justificar a aprovação de seus projetos nos bancos internacionais ou junto às organizações internacionais (…) Não dá pra se entender que o governo seja ecológico, que defenda a ecologia, que seja contra o desmatamento, e que ao mesmo tempo esse mesmo governo mande a polícia armada para proteger o desmatamento (…) Até o momento, a justiça sempre está do lado do maior. Um dos problemas, um dos pontos mais fracos com que nos defrontamos é a própria justiça. Muitas vezes recorremos ao apoio da justiça e a justiça, inclusive este ano foi claro, ficou do lado dos latifundiários (…)”
É justamente aí, no governo do PMDB de Flaviano Melo (1987-90), que podem ser encontrados os traços que teriam continuidade e que caracterizam o “fazer” do governo acriano desde 1999. Ao analisarmos atualmente os inúmeros conflitos pela posse da terra e aqueles relativos à expansão da exploração madeireira e pecuária no estado, vemos com clareza a reiteração daquele cenário político descrito por Chico Mendes em 1988. A diferença fundamental é que, hoje, o “ovo da serpente” eclodiu e o Estado está mais subordinado aos ditames dos financiamentos externos e à lógica do capitalismo verde (interpretado como resultante das modificações operadas no capitalismo no sentido de promover um movimento simultâneo de adaptação à nova divisão internacional do trabalho, ao reordenamento de natureza geopolítica, às reconfigurações nas relações Estado-Mercado e à assimilação do ambientalismo no processo de acumulação global que o presidem).
Os resultados de tudo isso apareceram bem sintetizados no já citado Do$$iê Acre. No referido documento destacam-se entre outros: 1) a elevada concentração da propriedade fundiária e da renda; a permanência dos conflitos pela posse da terra e o surgimento de outra ordem de conflitos relacionados com o processo de aprofundamento da mercantilização da natureza; interdição das demarcações de Terras Indígenas; 2) expansão das atividades produtivas consideradas mais predatórias como a pecuária extensiva de corte e exploração madeireira; 3) autoritarismo político e cooptação das representações dos trabalhadores, como o sindicalismo rural, com honrosa exceção do Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STTR) de Xapuri.
![O que prevaleceu não foi o legado de Chico Mendes mas, sim, o de seus inimigos. Foto: Victor Augusto/Secom](https://reporterbrasil.org.br/wp-content/uploads/2013/12/chico2.jpg)
Sendo assim, o que prevaleceu não foi o legado de Chico Mendes mas, sim, o de seus inimigos. A continuidade passível de constatação é aquela relacionada com o prolongamento da espoliação sob a batuta de um poder oligárquico que necessita ser ocultado para mostrar a imagem de um “Acre moderno”. Os “usos e abusos” da imagem de Chico Mendes (como diz Maria de Jesus Morais) são fundamentais neste sentido. Neste ano de 2013, o slogan usado pelo governo acriano para “comemorar” os 25 anos de assassinato de Chico Mendes foi: “25 anos, Chico Mendes vive mais” (texto e imagens sobre o assunto chegaram a ser publicados na página da Agência de Notícias do Governo do Acre, mas o link http://www.agencia.ac.gov.br/index.php/chico-mendes-25-anos não está mais disponível).
Por esta razão, ao invés de usar a dita expressão parece mais apropriado dizer que Chico Mendes vive mais indignado com o capitalismo verde.
* Elder Andrade de Paula é professor associado do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Acre.
Leia também:
25 anos sem Chico Mendes e a realidade dos trabalhadores de Xapuri