Florianópolis (SC) – Os auditores fiscais do trabalho têm a tarefa de checar as condições do transporte oferecido pelos empregadores, mas por vezes ainda sofrem na pele, eles próprios, com a insuficiência de veículos para fiscalizar a zona rural. As complicações em termos de estrutura são apenas uma das dificuldades enfrentadas pelos profissionais dedicados à fiscalização das condições de trabalho no campo, responsáveis inclusive por flagrantes de crimes mais graves como trabalho escravo e trabalho infantil.
Há cerca de duas semanas, dois carros da fiscalização que voltavam de uma operação rural em Alagoas tiveram problemas, resultando em risco de acidente. "Um carro estava com o pneu careca e quase derrapou e a barra de direção do outro quebrou no meio da estrada", relata Allysson Jorge Lira de Amorim, chefe da seção de inspeção do trabalho rural da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de Alagoas (SRTE/AL). Como um dos automóveis ainda não foi consertado, os seis fiscais da equipe de Allysson se revezam atualmente apenas com uma viatura para cobrir 102 municípios alagoanos. A SRTE/AL tem ao todo 40 auditores fiscais; a maioria se dedica a fiscalizações em áreas urbanas.
"A nossa maior dificuldade está no transporte dos fiscais porque não há manutenção para a frota de carros, que é muito antiga. O número de veículos é insuficiente. Isso impede a contratação de novos fiscais, apesar da demanda de trabalho ser grande", relata Paulo Mendes, coordenador da fiscalização rural da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de Pernambuco (SRTE/PE). Paulo comanda dez auditores e tem dois carros à disposição. "Em Pernambuco, há 22 usinas de cana-de-açúcar e mais de 14 mil engenhos, sem contar as propriedades de pecuária, entre outros setores".
Durante a fiscalização de um engenho, o carro da equipe de fiscais de Pernambuco não funcionou e o dono da propriedade – que havia sido autuado por diversas irregularidades – se ofereceu para comprar uma nova bateria e chamar seus funcionários para ajudar no conserto do veículo. "Eu não aceitei, é claro, olha a situação pela qual somos obrigados a passar", desabafa Paulo. Ele ressalta ainda que a negociação final é um dos momentos mais tensos das operações, principalmente em locais afastados. "É a hora em que corremos mais risco de sofrermos qualquer atentado. Imagina então se o carro te deixa na mão? É por isso que muitos auditores preferem as fiscalizações urbanas e não as rurais".
A limitação no quesito transporte faz com que a atuação seja prejudicada. "Tivemos casos em que trabalhadores estavam protestando e não pudemos ir até o local apurar as denúncias porque não conseguimos chegar ao local. Fomos obrigados a elaborar um rodízio entre os fiscais e as denúncias para manter o mínimo de atividade", conta Allysson, de Alagoas.
Doações e pontos
Segundo Paulo Mendes, de Pernambuco, as equipes de fiscalização rural dependem ainda de recursos provenientes de Termos de Ajuste de Conduta (TAC) firmados pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) com os agentes autuados para a aquisição de equipamentos eletrônicos e automóveis. "Não é o ideal. O Estado é que deve estruturar as superintendências. Vejo que essa falta de estrutura se repete em todo o Nordeste".
No caso de Alagoas, o Sindicato da Indústria do Açúcar e do Álcool no Estado de Alagoas (Sindaçúcar/AL) firmou um TAC neste mês com o Ministério Público do Trabalho (MPT) – depois de uma força-tarefa varreu usinas e flagrou casos de mão-de-obra degradante – em que se compromete a doar nove veículos e computadores portáteis para a superintendência. "Acabamos ficando dependentes desse tipo de doação, feita por meio dos TACs", conclui Allysson.
A dependência do dinheiro de acordos também é vista com ressalvas por Sueko Uski, auditora da equipe de fiscalização rural da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de São Paulo (SRTE/SP). "Indiretamente, é o setor patronal que está nos equipando. Considero isso muito complicado. Porém, esses equipamentos doados facilitam nosso trabalho". A equipe de Sueko conta com mais de 20 pessoas e cerca de oito carros para fiscalizar a área rural do estado de São Paulo.
O grupo móvel de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), que atua em âmbito nacional atendendo denúncias mais graves, já sofreu com a falta de equipamentos. "No início, o grupo móvel enfrentava algumas dificuldades, tínhamos que acionar as SRTEs de vários estados para pedir carros, por exemplo. Com o tempo, alguns equipamentos vieram por meio de doações da Organização Internacional do Trabalho (OIT), melhorando as condições das operações", relata Sueko Uski.
Ela coordenou durante dois anos uma das equipes do grupo móvel, composto por auditores fiscais do trabalho, procuradores do MPT e membros da Polícia Federal (PF) ou da Polícia Rodoviária Federal (PRF). "Hoje em dia há celulares, global star [telefone via satélite], o Sistema de Posicionamento Global [conhecido como GPS, para facilitar a localização geográfica], máquinas fotográficas, notebooks", enumera Sueko.
A cobrança quanto ao número de agentes fiscalizados e a soma de uma determinada pontuação mensal também pressiona os fiscais que vasculham o meio rural. Aqueles que fiscalizam a arrecadação do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e os casos de cooperativas, por exemplo, são enquadrados em "atividade especial" e não precisam atingir essas metas.
Paulo Mendes, de Pernambuco, lembra que o cumprimento de metas se torna ainda mais complexo no caso das fiscalizações rurais porque as propriedades são distantes e as operações tomam mais tempo dos auditores fiscais. Caso as metas estabelecidas não sejam cumpridas, o profissional pode vir a sofrer um processo administrativo.
Disputas jurídicas
Outro problema citado no painel "Trabalho Escravo: degradação da pessoa humana", durante o 26º Encontro Nacional dos Auditores Fiscais (Enafit), em Florianópolis (SC), diz respeito às ações judiciais que colocam em xeque o trabalho da fiscalização. Alguns membros do Poder Judiciário questionam a validade dos autos de infração lavrados durante as operações, salientaram fiscais, em discussões realizadas nesta segunda-feira (24).
Além disso, muitos fazendeiros têm entrado com mandado de segurança para impedir a rescisão indireta do contrato de trabalho, ação promovida pelos fiscais quando há resgate dos trabalha
dores. "Alguns juizes alegam que não é permitido obrigar um trabalhador a sair do local de trabalho. Mas nós sabemos que nos casos em que há resgate é porque as condições de trabalho ferem a dignidade do ser humano", comentou Rita de Cássia Rezende, advogada da Advocacia-Geral da União (AGU).
A própria definição de trabalho escravo acabou sendo debatida no encontro. "Os fazendeiros dizem que era trabalho degradante e não escravo para dificultar ainda mais a condenação desse crime. Eles entram com ações para questionar o termo. Por isso eu defendo que não deve haver diferenciação entre trabalho escravo e degradante", declarou José Luciano Leonel de Carvalho, fiscal da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de Goiânia (SRTE/GO). Ele avalia que é possível enquadrar casos como de trabalho escravo mesmo quando não há clara restrição de liberdade dos empregados. "O trabalho degradante atenta contra a dignidade do trabalhador a ponto de coisificá-lo, ou seja, a ponto de negar sua condição de ser humano e fazê-lo insumo de produção".
Rita de Cássia, da AGU, comparou casos como esses com a tortura."O fato de afirmar que foi uma tortura pequena ou por um período curto não ameniza o crime, assim como não é possível estabelecer graus de degradação das condições de trabalho para diminuir a punição dos empregadores".
O trabalho escravo consta como crime no Artigo 149 do Código Penal e é condenado pelas Convenções 29 (sobre Trabalho Forçado) e 105 (Abolição do Trabalho Forçado) da OIT, das quais o Brasil é signatário.
*A jornalista viajou a Florianópolis a convite da organização do 26º Encontro Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Enafit).