Araguaína – Depois de ter sido despejada e passar três meses alojada numa quadra esportiva em Filadélfia (TO), a comunidade quilombola do Grotão pôde retornar ao território que ocupam há cerca de 200 anos. O juiz Ricardo Damasceno de Almeida, da Vara Cível da Comarca de Filadélfia, promoveu uma conciliação que permitiu que as 31 pessoas da comunidade – entre elas uma com deficiência física, outra com deficiência mental, além de várias crianças -, retornassem a conviver com os patriarcas Raimundo José de Brito, 69 anos, e Cirilo Araújo de Brito, de 72 anos, os únicos que puderam continuar nas terras localizadas a cerca de 100 km do núcleo urbano de Filadélfia.
A conciliação entre os quilombolas e o casal que pleiteia a posse da área, Marcelo Carvalho da Silva e Daniela Sousa Carvalho da Silva, se deu mediante o processamento de uma demarcação provisória por parte do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), que estabeleceu os limites da área reduzida de 100 hectares destinada à população tradicional.
Com base no acordo firmado em 17 de dezembro de 2008, as famílias teriam apenas 15 dias, a contar da data de encerramento do trabalho dos técnicos do Incra, para refazer os barracos destruídos na violenta ação de despejo e retirar as benfeitorias das terras para além dos 100 hectares demarcados. A demarcação provisória foi concluída no dia 31 de dezembro de 2008, mas a comunidade só conseguiu chegar ao território oito dias depois, num caminhão da prefeitura de Filadélfia. Os pertences dos quilombolas foram levados no mesmo dia por um outro caminhão cedido pelo Incra. Restaram, assim, apenas sete dias para a tarefa de reconstruir e recuperar parte do que eles já haviam plantado. "Não deu tempo para arrancar a mandioca e fazer sete barracos", lamenta Maria Aparecida Gomes Rodrigues, de 30 anos, uma das lideranças do Grotão.
Para cumprir acordo, quilombolas derrubaram as suas próprias moradas (Foto: Jane Cavalcante) |
Não há área fértil dentro dos 100 hectares reservados provisoriamente aos quilombolas. As quatro roças de mandioca do local não foram incluídas na demarcação. Uma delas era comunitária e o prejuízo calculado chega a 250 quartas de farinha, o que equivale a 125 sacos de 60 quilos. Essa quantidade seria suficiente para dois anos de alimentação. Sem contar a interrupção do ciclo normal da agricultura e da produção (preparação do solo, plantio, colheita, torração da farinha, apuração do polvilho e da puba), que constituem a base da subsistência da comunidade.
Para amenizar as perdas, um dos itens do acordo prevê uma indenização por conta da roça comunitária, mas a parte dos recursos que cabe aos pleiteantes das terras (Marcelo Carvalho da Silva e Daniela Sousa Carvalho da Silva) não havia sido cumprida até 16 de janeiro, data final para o cumprimento das determinações do acordo para ambas as partes.
Casas foram queimadas durante ação de despejo da comunidade quilombola (Foto: Jane Cavalcante) |
Os acessos aos riachos, tradicionalmente utilizados para pesca, e às nascentes, fontes de água potável, também ficaram de fora da conciliação judicial. Pelo acordo, os quilombolas estão impedidos de trafegar fora do perímetro delimitado pela demarcação do Incra. O juiz permitiu apenas o tráfego pela estrada que interliga a comunidade ao núcleo urbano de Filadélfia.
A maioria das antigas moradias foi queimada e destruída na ação truculenta de reintegração de posse. Em cumprimento fiel à determinação judicial, a casa do ancião Cirilo teve que ser derrubada pela própria comunidade. Eles ainda tentaram aproveitar o barro para a construção de novas paredes e se esforçavam para garantir um forno para fazer a farinha.
"Todos os membros da família sempre viveram aqui e ainda estão todos aqui. Desde os mais velhos que já morreram e estão enterrados aqui até os outros, que nasceram aqui também", conta Cirilo. Ao relembrar o momento do despejo, Raimundo Cantuário Camilo dos Reis, esposo de Maria Aparecida, afirma que "foi a única vez que a comunidade se deslocou da região e se ausentou do local em que nasceram, se criaram e viveram até então".
No período em que ficaram na quadra esportiva de 50 m² no centro de Filadélfia, havia apenas uma torneira e, por três dias ininterruptos, faltou água. Mesmo com o retorno ao território tradicional, paira ainda um clima de incerteza, principalmente quanto ao estudo das crianças quilombolas. Segundo Maria Aparecida, as crianças eram muito discriminadas na escola da zona rural e o prefeito de Filadélfia prometeu arrumar transporte para que elas possam estudar num povoado mais próximo. A promessa, contudo, ainda não se concretizou.
Grupo de 31 pessoas vive "confinado" numa área de cerca de 100 hectares (Foto: Jane Cavalcante) |
Pesquisa antropológica da Universidade Católica Dom Orione estima que a comunidade quilombola do Grotão habita a região há aproximadamente 200 anos. Esse estudo, porém, não foi levado em consideração no acordo judicial. Para casos de comunidades remanescentes de quilombo, é preciso que haja um estudo elaborado por um profissional credenciado pelo Incra.
A comunidade aguarda, portanto, que o Incra redefina os marcos da demarcação (para além dos 100 hectares provisórios) quando do trabalho de caráter mais definitivo. "O antropólogo do Incra já nos comunicou que estará vindo até o final deste mês de janeiro para fazer o estudo oficial e, com base no mesmo, fazer a demarcação definitiva", conta Pedro Ribeiro, da Comissão Pastoral da Terra (CPT) de Araguaína (TO), que vem acompanhando o caso.
"Confiamos que tudo vai melhorar depois da medição e do estudo do antropólogo. Nós tomamos grande prejuízo: nossas criações domésticas acabaram. Fiquei muito abalada com essa saída, mas estamos felizes por ter voltado e temos esper
ança de que tudo se resolva e que futuramente temos a esperança de conseguir todo nosso território de volta", diz Aparecida.
Leia a íntegra do termo de conciliação
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