Fazenda Amazônia 3

MP institui reforma imobiliária no lugar da reforma agrária

Assinada pelo presidente Lula durante o Encontro Nacional de Novos Prefeitos e Prefeitas, proposta prioriza legalização expressa de terras na Amazônia. "A medida torna equivalente posseiros e grileiros", analisa geógrafo da USP
Por Maurício Reimberg
 16/03/2009

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Considerado um tema prioritário do governo federal neste ano, a eventual aprovação da Medida Provisória (MP) 458/09 sintetiza uma visão política que abandona a perspectiva de reforma agrária em prol da regularização fundiária de terras públicas na Amazônia, numa iniciativa que nivela posseiros e "grileiros" em áreas marcadas por conflitos e desmatamento.

Essa foi a principal conclusão do debate promovido na sexta-feira (13) pela Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra) na Universidade de São Paulo (USP). O encontro reuniu especialistas, parlamentares e representantes de movimentos sociais para analisar a MP, que está em fase de votação no Congresso Nacional. O texto recebeu 249 propostas de emenda. O relator é o deputado Asdrúbal Bentes (PMDB-PA), mais um dos numerosos representantes da bancada ruralista no Parlamento nacional.

A MP autoriza a transferência sem licitação a particulares de terrenos da União na Amazônia Legal de até 1,5 mil hectares. Ao todo, o governo prevê a regularização de 296 mil imóveis rurais em 436 municípios, numa extensão superior a 67,4 milhões de hectares de terras federais não-destinadas. A ocupação, direta e pacífica, deve ser anterior a dezembro de 2004.

Segundo o geógrafo Ariovaldo Umbelino de Oliveira, professor titular da USP, a medida "legaliza a grilagem". "A MP tem no seu interior a regularização das posses, mas também a regularização dos grilos que vão até 2,5 mil hectares", explica. "A medida torna equivalente posseiros e grileiros. Essa é a manobra jurídica principal que ela contém". Na região, boa parte das áreas sob domínio privado não têm documentação completa.

A medida foi assinada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante o Encontro Nacional de Novos Prefeitos e Prefeitas, realizado em fevereiro deste ano. A MP regulamenta o programa Terra Legal, coordenado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). Depois da disputa em torno da proposta do ministro Roberto Mangabeira Unger – da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) – de criação de uma nova autarquia à parte, o MDA levou a melhor no cabo-de-guerra interno e pretende conduzir os trabalhos a partir da Diretoria Extraordinária de Regularização Fundiária na Amazônia Legal, responsável por supervisionar os escritórios estaduais.

Terras públicas
A Amazônia Legal, que soma 508,8 milhões de hectares, corresponde à totalidade dos estados do Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins e parte do Maranhão. Segundo os dados oficiais de 2003, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) discriminou nesses estados 105,8 milhões de hectares. Desse total, continuam sem destinação 67,4 milhões de hectares.

"Uma parte do território brasileiro permanece devoluta (96 milhões de hectares). Uma parte foi cercada, mas quem cercou não dispõe dos instrumentos legais para a posse", explica Ariovaldo. "Terra devoluta é terra pública não-discriminada, e não terra de ninguém". Ele integrou a equipe que elaborou a proposta do 2º Plano Nacional de Reforma Agrária para o governo, em 2003. O plano foi descartado.

A meta do governo é legalizar as terras em três anos. Os atuais processos de regularização levam mais tempo. O sentido de urgência permeia todo o texto da MP. A medida dispensa vistoria prévia dos imóveis até quatro módulos fiscais – é necessária apenas uma declaração do ocupante. A titulação de áreas até um módulo fiscal será gratuita e ocorrerá entre dois a quatro meses.

Além disso, nas propriedades de um a quatro módulos, a terra pode ser vendida diretamente ao ocupante com valor diferenciado, abaixo do preço de mercado. Ele teria direito a 20 anos para pagamento e três anos de carência. No caso de posses entre quatro e 15 módulos, haverá licitação com "preferência" para os ocupantes. Para terrenos maiores de 2,5 mil hectares, é preciso autorização do Congresso Nacional. "Que licitação é essa se o grileiro já tem direito de preferência?", questiona Ariovaldo Umbelino.

Para o advogado Plínio de Arruda Sampaio, presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra), a nova medida provisória deve funcionar na prática como uma ampla "lavagem" dos títulos de posse. "É uma manobra para depois vender terras legalizadas para os grandes do agronegócio", afirma. "O título (de posse) vai ser perfeito, chancelado pelo Estado brasileiro".

Regularização
A MP 458/09 é a mais abrangente numa série de medidas implementadas pelo governo para tentar simplificar o rito de titulação das posses. Até 2004, só era possível vender terras públicas de até 100 hectares na Amazônia. No entanto, diversas modificações tornaram a legislação mais "flexível".

Uma das principais medidas foi o artigo 118 da Lei nº 11.196/05, conhecida como "MP do Bem", que regularizou terras até 500 hectares. Em seguida veio a MP 422/08, convertida em Lei nº 11.763/08, apelidada por movimentos ambientalistas de "Plano de Aceleração da Grilagem (PAG)". Emitida em março e aprovada em julho de 2008, permitiu ao Incra titular diretamente, sem licitação, propriedades na Amazônia Legal com até 1.500 hectares.

Segundo José Vaz Parente, diretor da Confederação Nacional das Associações dos Servidores do Incra (Cnasi), a MP 458 agora rompe com uma prática histórica. "No Incra, a regularização fundiária sempre foi entendida como uma ação complementar à reforma agrária. Esssa MP rompe com essa lógica. O que está em discussão é a manutenção do mo
delo convencional excludente socialmente e sua expansão e consolidação", coloca.

Modelo
João Paulo Rodrigues, membro da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), afirma que a MP "coroa" o modelo de desenvolvimento agrícola apresentado pelo governo Fernando Henrique Cardoso (1994-2002) e que, na visão do MST, não foi alterado no período Lula. "A MP complementa a lógica do que tem que avançar na Amazônia é o agronegócio, com criação de boi, eucalipto e soja".

Segundo João Paulo, a reforma agrária está "completamente fora de pauta" no governo. "Nunca tivemos muitas ilusões de que esse governo iria resolver o problema da concentração da terras", declara. Ele afirma que, desde 1994, foram assentadas em torno de 50 mil famílias que pertencem ao MST. "Em 2007, sete mil famílias foram assentadas pelo governo, de uma meta proposta de 100 mil por ano", lamenta.

Considerado um dos principais movimentos sociais do país, o MST ainda encontra dificuldades de atuação política numa área que deve ser um dos grandes pólos de debates nos próximos anos. "Nós não estamos organizados lá na Amazônia", reconhece João Paulo. Segundo o MST, existem cerca de 5 milhões de famílias sem-terra no Brasil. Desse total, 130 mil estão mobilizadas nos acampamentos do movimento.

O governo Lula, na avaliação de Ariovaldo Umbelino, concentrou a maior parte dos esforços na regularização fundiária em detrimento da reforma agrária. "Já havia uma clara determinação de só fazer reforma agrária sob pressão", continua o professor da USP. A maioria dos assentamentos criados por esta gestão situa-se na Amazônia Legal.

O geógrafo afirma que uma parte das terras do Incra no Mato Grosso já está sob controle do agronegócio. "Por que o governo não pede a reintegração de posse de todas as terras do Incra?", questiona. "O governo fez opção preferencial pelo agronegócio. A reforma agrária passou a ser secundária".

Divisão
O governo defende que a MP 458 possui um propósito ambiental e social. Ao mesmo tempo em que a regularização das terras beneficiaria os pequenos posseiros estabelecidos na Amazônia Legal, o possível fim do caos fundiário conteria o desmatamento, pois facilitaria a fiscalização e a punição dos responsáveis por crimes ambientais. Outro objetivo é dar garantia jurídica aos futuros investimentos na região.

Especialistas temem, no entanto, que esse processo possa levar a um novo ciclo de expansão da fronteira predatória. "O governo diz que só a regularização fundiária vai inibir o desmatamento. Para fazer uma afirmação dessas tinha que ver se as outras fazendas regularizadas respeitam o código florestal", critica. A legislação ambiental determina que o produtor da Amazônia preserve ao menos 80% da área nativa.

A polêmica dividiu a própria base de apoio ao governo. Há parlamentares que defendem a transformação da MP num projeto de lei. É o caso do senador Eduardo Suplicy (PT-SP). Ele diz que o tema possui uma "extraordinária complexidade". "É uma área maior que a França. Há critérios precários de posse, principalmente por causa do processo autodeclaratório. O assunto merece um debate mais atento da sociedade".

O petista Eduardo Suplicy afirma que a discussão precisa estrar inserida num amplo programa de ordenamento territorial, que tenha o objetivo de "definir a destinação das áreas e separar com clareza a posse mansa e pacífica daquela que seja objeto da grilagem".

Ex-ministra do Meio Ambiente (de 2003 a maio de 2008), a senadora Marina Silva (PT-AC) apresentou em fevereiro uma emenda com diversas ressalvas à MP. Ela sugere reduzir o limite de regularização de 1,5 mil para 400 hectares. Marina também solicita vistoria prévia como exigência para a legalização de propriedades entre 101 e 400 hectares.

Abandono
Em manifesto público sobre a medida provisória, a Abra afirma que a MP 458 representa um "enorme empreendimento imobiliário" que apropria o patrimônio público. A entidade diz que essa política evidencia que o governo "abandonou definitivamente" a reforma agrária e vê a região amazônica como uma potencial exportadora de commodities e minérios.

"Nos governos da ditadura militar, a reforma agrária não ocorreu e foi transformada em ações de colonização; nos dois governos de FHC o mesmo aconteceu e criou-se a reforma agrária de mercado; o governo Lula ficará conhecido como aquele que no lugar da reforma agrária prometida instituiu a política agrária imobiliária – a reforma agrária imobiliária", diz o documento.

A Abra defende a revogação sumária da MP e reafirma a necessidade da distribuição de terras para a justiça social no campo. "A Reforma Agrária, preceito constitucional e programa de desenvolvimento sócio-econômico para geração de trabalho, emprego e renda, não pode ser abandonada".

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