Das 21 ações judiciais contrárias a demarcação de territórios quilombolas no Brasil protocoladas em 2008, 14 dizem respeito à comunidade de Barra do Parateca, na Bahia. Fixados à margem esquerda do Rio São Francisco, no município de Carinhanha (BA), os quilombolas recebem ameaças constantes dos fazendeiros da região que têm interesse na área.
A comunidade conseguiu a Certidão de Auto-Reconhecimento da Fundação Cultural Palmares, ligada ao governo federal, em 2005. Ainda aguarda, contudo, a conclusão do relatório antropológico e de outros itens que compõem o relatório técnico de identificação e delimitação (RTID), sob responsabilidade do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
"O relatório antropológico começou a ser feito em setembro do ano passado e a previsão é que termine em julho deste ano", conta Elson Ribeiro Borges, da Associação Agropastoril Quilombola de Barra do Parateca.
O quilombo de Barra do Parateca aglutina habitantes de outros territórios tradicionais da região – principalmente das comunidades do Rio das Rãs, descendentes de escravos de fazendas locais e agregados. Inicialmente, os quilombolas ocupavam uma área muito maior do que ocupam hoje.
"Os fazendeiros avançaram cercas, expulsaram quilombolas e passaram a cobrar taxas e arrendamentos pela utilização de terras que nunca haviam sido suas. Eles recorreram à violência física, à pistolagem, à apropriação de terras da União [a famosa "grilagem" às margens do Rio São Francisco] e à concessão de pequenas vantagens a alguns moradores da comunidade para mantê-los satisfeitos", conta Carlos Eduardo Chaves, da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais no Estado da Bahia (AATR).
O advogado relata que os quilombolas foram sendo expulsos das ilhas e dos sequeiros e hoje são obrigados a viver praticamente confinados na área dos lameiros. A pesca artesanal também ficou prejudicada por conta da degradação do rio, o avanço da piscicultura e da pesca predatória.
Elson Ribeiro Borges, da associação de Barra do Parateca, confirma que as famílias vivem numa situação complicada. "Os fazendeiros ocuparam mais terras e as mais de 200 famílias ficaram aglomeradas em um espaço de 600 metros de frente e 300 metros de fundo. É muito difícil. Estamos cercados: tem fazenda atrás da comunidade, na frente temos o Rio São Francisco, de um lado outra fazenda, do outro lado tem uma reserva ambiental".
Jovens e chefes de família estão deixando o local em busca de trabalho. "Com isso, entra em cena também um processo profundo de desagregação dos núcleos familiares e da comunidade em virtude da inviabilização dos meios de sustento tradicionais", completa Carlos Eduardo.
Segundo dados do relatório da Associação Agropastoril Quilombola de Barra do Parateca, no mês de janeiro do ano passado, 80 homens do local foram para Goiás trabalhar em fazendas. Em fevereiro deste ano, outros 30 homens viajaram para o Mato Grosso para trabalhar no corte de cana. "Antes dessas migrações, muitos integrantes da comunidade passaram a trabalhar para fazendeiros, porém não recebiam nada", relata Elson.
Elson se afastou da coordenação da associação por conta de represálias. "Cheguei a ser preso. Os fazendeiros são muito poderosos. Para sair da comunidade tenho que sair escondido", relata. O agricultor conta que não adianta registrar Boletins de Ocorrências ou ligar para a polícia quando os capangas dos proprietários estão rondando armados a comunidade. "Nós ligamos, denunciamos, mas sempre ouvimos desculpas".
Outros integrantes da comunidade também já sentiram essa pressão. "Os fazendeiros colocam capangas nas estradas, no acesso às nossas plantações. Outro dia um adolescente estava procurando um bezerro do seu pai na estrada e um fazendeiro foi com a arma na mão para cima do jovem, perguntando o que fazia ali, ameaçando quem entrasse ali de morte", relata Elson.
De acordo com os moradores de Barra do Parateca, fazendeiros cercados de capangas dizem que atearão fogo nas casas dos quilombolas caso o grupo tradicional continue a pleitear a titulação da terra.
A pesca e a agricultura praticada nos terrenos férteis deixados após as cheias do São Francisco (chamados de "lameiros") e em áreas mais afastadas das margens do rio ("sequeiro") são as principais atividades da comunidade remanescente de quilombo. Barra do Parateca mantém a prática de religiões de matriz africana como o candomblé, bem como manifestações culturais como as rodas de sambas e a Folia de Reis.
Manobra
Das 14 ações, 10 são de cunho possessório, diretamente contra a comunidade. Os processos foram protocolados inicialmente na Justiça Estadual, que emitiu decisões liminares (e mandatos de reintegração de posse) contrárias aos moradores de Barra do Parateca. Três proprietários e proprietárias rurais da região assinam as ações: Dagmar Pedro Silva, Elizabeth Batista de Azevedo Bahia e João Batista Pereira Pinto, que é juiz da Comarca de Guanambi (BA). Todas foram movidas quando a comunidade fundou a Associação Agropastoril Quilombola de Barra do Parateca, no inicio de 2007.
Por meio da assessoria jurídica da AATR, os quilombolas conseguiram o deslocamento dos processos para a Justiça Federal. "Tais ações, depois de contestadas e dada a intervenção do Incra e da Fundação Cultural Palmares, foram remetidas à competência da da Subseção Judiciária da Justiça Federal de Guanambi, onde as liminares de reintegração foram automaticamente mantidas, sendo que duas delas já foram cumpridas. A associação interpôs agravo de instrumento para as mesmas. A terceira liminar ainda não cumprida e o prazo para recurso ainda não foi aberto", detalha Carlos Chaves.
Das outras sete ações possessórias, uma continua na Justiça Estadual e as outras seis serão extintas por falta de pagamento dos custos processuais. Para Carlos, trata-se de uma "manobra tática" dos fazendeiros. "Eles se uniram para interpor no final de 2008 a ação ordinária para anular o procedimento administrativo de demarcação e titulação do território pelo Incra". Porém, o pedido de tutela antecipada foi negado em 7 de abril.
Além dessas ações, há outras quatro propostas diretamente contra o Incra, que visam interferir no procedimento administrativ
o de titulação da área. Os autores são os mesmos que propuseram as ações possessórias.
As contestações judiciais são comumente apontadas pelo governo como justificativa para a paralisia na titulação de terras quilombolas, mas a concentração de ações em algumas áreas específicas, como a de Barra do Parateca, revela que existem outros "gargalos" além da Justiça.
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