“Na sala do apartamento há dois retratos em preto e branco da mesma moça. Entre eles, uma figura mitológica grega. Todas são Ísis. A figura é a deusa da fertilidade. A moça dos retratos é a filha de dona Felícia, Ísis Dias de Oliveira, desaparecida na ditadura militar, em 1972.
Por sete anos, Felícia de Oliveira, 86, viveu angustiada a incerteza do destino da filha. Não sabia se ela estava viva ou morta, apenas tinha convicção de que ela havia sido capturada pela polícia por ser membro da Ação Libertadora Nacional (ALN), grupo político de esquerda com o qual se envolveu na época em que cursava Ciências Sociais na Universidade de São Paulo (USP).
‘Era um domingo e tudo estava fechado, Pegamos um circular e fomos num lugar longe, lá em Copacabana. Entramos numa lanchonete que encontramos aberta. Apesar da minha crise de vesícula, eu ainda comi uma tortinha de morango com creme de chantilly naquele dia. Não devia…’. Essa foi a última vez que dona Felícia viu a filha, no dia em que Ísis completava trinta anos. Ela se mudara para o Rio de Janeiro na véspera do aniversário da mãe, sem dar muitas explicações. ‘Na época, nem a gente perguntava, e nem ela dizia muito. Eu acho que era uma forma de ela tentar preservar a família de represália.’ A partir daí, elas se viam de tempos em tempos.
Marcaram um encontro nas costas da Igreja da Candelária. A mãe esperou horas a fio, temendo agoniada pelo que pudesse ter ocorrido. Ísis já havia alertado que se algo acontecesse uma companheira avisaria a família. Essa era a terceira vez que ela não aparecia, mas dessa vez foi para sempre.
Depois disso, a amiga militante deu a notícia de que Ísis havia sido presa e que era preciso tomar as providências necessárias o quanto antes, pois ela corria risco de vida. Dona Felícia lembra que, na época, não sabia nem por onde começar a procurá-la. ‘Vocês estão procurando a Ísis? Ah, nós também…’, diziam os militares.
Sete anos se seguiram e a busca levava a família a presídios, hospitais, IML e quartéis. ‘Toda a vez que eu resolvia ir a algum lugar procurar a minha filha era uma agonia. Eu ficava aflita, queria sair correndo bem depressa de lá, porque parecia que dessa vez eu a encontraria’.
A certeza de que Ísis estava mesmo morta só veio em 1979, quando o governo admitiu o seu falecimento.
Mais de quarenta anos se passaram desde que dona Felícia viu sua filha, ‘mas parece que isso nunca acaba’. Até hoje, o corpo não foi encontrado |
Mais de quarenta anos se passaram desde que dona Felícia viu sua filha, ‘mas parece que isso nunca acaba’. Até hoje, o corpo não foi encontrado, ‘Quando se seguem os rituais cristãos de sepultamento, a gente tem um período de luta interna. Agora estou calejada. Mas esquecer a gente nunca esquece’.
Nos sonhos, dona Felícia ainda vê a filha: ‘Ísis, fica mais um pouco. Não vai ainda…’. ‘Mãezinha, eu tenho que ir, tenho que ir…’”
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Esse texto foi escrito por mim e pela minha amiga Angela Pinho, em 2004, enquanto cursávamos a faculdade de jornalismo, para o Claro!, uma publicação quinzenal do próprio curso de jornalismo.
A temática desse exemplar era “Mãe”. A ideia era homenagear essa figura querida no seu dia. A nossa turma entrevistou uma porção de mães emblemáticas: mãe de juiz (a mais xingada do mundo), mãe de santo… Coube a nós escrever sobre a mãe de um desaparecido político. Não me lembro bem como chegamos ao nome de Dona Felícia dentre tantas mães que perderam seus filhos para a ditadura, mas me recordo bem do dia em que fomos ao seu apartamento ouvir a sua história.
No meio do relato, a voz embargava numa tristeza misturada a uma indignação contida, num tom de quem já repetiu muito a sua história, mas ninguém parece ter realmente escutado.
Quando soube que dona Felícia falecera em 2010, senti muita frustração por ela não ter recebido respostas alguma. Ela se foi, remoendo a incerteza e deglutindo uma dúvida que nunca digeriu.
Não é só o Estado que falha quando se nega a pôr em pratos limpos o que realmente aconteceu durante os 21 anos de ditadura militar.
Falhamos enquanto democracia por aceitar que instituições do sistema sejam coniventes com o crime e o silêncio.
Falhamos enquanto acadêmicos por tentar encontrar explicações generalistas que criam abismos entre teoria e realidade, nos quais os algozes da ditadura permanecem escondidos.
Falhamos enquanto ideólogos quando reafirmamos o binarismo maniqueísta “direita vs esquerda”, sem conseguir tratar das zonas cinzentas sem recalques e tabus |
Falhamos enquanto ideólogos quando reafirmamos o binarismo maniqueísta “direita vs esquerda”, sem conseguir tratar das zonas cinzentas sem recalques e tabus.
Falhamos enquanto sociedade por termos cedido à banalidade do mal.
Falhamos enquanto pessoas por conseguirmos conviver com as sombras irresolutas do passado.
Peço desculpas por, no aniversário de 50 anos do golpe, encerrar o texto de forma pessimista, mas considero indigno qualquer tipo de comemoração, quando mães ainda são impedidas de enterrar seus filhos assassinados. A ditadura, assim, ainda continua castigando os fantasmas de suas vítimas.
* Natália Suzuki é coordenadora do programa de educação Escravo, Nem Pensar!