Em 10 de agosto, de 1974, Tito de Alencar Lima, o frei Tito, tirava a própria vida na França. Ele vivia atormentado pela memória da tortura que sofrera em 1969 nas dependências do Departamento de Ordem Política e Social, o Dops, órgão de repressão então comandado pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, acusado por presos políticos como um dos maiores torturadores do período. Tito fazia parte do grupo de dominicanos que eram próximos ao guerrilheiro Carlos Marighella e, por isso, perseguidos pelo regime.
Um dos últimos a ver frei Tito com vida foi Xavier Plassat, também frei dominicano. Os dois conviveram por alguns meses no convento de La Tourette, em Éveux, na região de Lyon, na França. Hoje agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT) no Tocantins, onde vive desde 1989, Plassat, logo depois da morte de Tito, reuniu alguns de seus escritos e os publicou em francês.
Lançamento
No último dia 9 de agosto, com o título “As próprias pedras gritarão – escritos, ideias e poemas de frei Tito”, a obra foi lançada em português em São Paulo, durante o seminário “Frei Tito e a Revolução Brasileira – Reflexões a partir dos escritos de Tito sobre Resistência à Ditadura, Educação Popular e Socialismo”. O evento, que recebeu cerca de 300 pessoas, contou com testemunhos como o do próprio Xavier, Ivo Lesbaupin, frei Betto, Mário Simas, advogado dos dominicanos durante a ditadura, e Lúcia de Alencar Lima, sobrinha de Tito. Alfredo Bosi, Fernando Altemeyer e João Pedro Stédile, entre outros, participaram dos debates. No dia anterior, houve uma celebração na igreja São Domingos, no bairro de Perdizes, na capital paulista.
O livro organizado por Xavier Plassat foi editado artesanalmente por Carolina Motoki, Rafael Oliveira e o próprio Plassat. Os desenhos que o ilustram são de Silvio Diogo.
Plassat foi o responsável também pelo texto de apresentação, que reproduzimos a seguir:
As próprias pedras gritarão!
Lembro como se fosse ontem: o dia era 12 de setembro de 1973. As rádios anunciavam o golpe de Augusto Pinochet, deflagrado na véspera em Santiago do Chile contra o presidente Salvador Allende. Para muitos, entre eles o Tito, refugiado na França desde o início de 1971, a notícia soava como a morte da última esperança ainda em aberto. Naquele dia eu chegava de longa viagem e voltava ao convento dominicano de La Tourette, onde eu residia desde o ano anterior. Achei Tito prostrado e gemendo ao pé de uma árvore, no estacionamento em frente ao edifício concebido por Le Corbusier, situado em meio a bosques e extensas vinhas, no conhecido Beaujolais, perto de Lyon.
Tito assim estava desde cedo e já era meio da tarde. Ninguém entre os 14 membros da comunidade entendia seu choramingo incessante e assustador. Poucos anos nos separavam, Tito e eu. Então me pediram para tentar algo, já que ele e eu, nos poucos meses que tínhamos de convivência, havíamos nos tornado mais próximos e, de certa maneira, amigos, além de irmãos em São Domingos.
Imitando o Tito, eu sentei no chão e fiquei ao seu lado, encostado na mesma árvore, abraçando-lhe o ombro.
Passaram-se longas horas. Eu não entendia coisa com coisa. Eu não sabia daquele absurdo tormento. Eu tão somente procurava abrigar o amigo da chuva intermitente daqueles primeiros dias do outono.
Lá pelas altas horas da noite, a duras custas, incrédulo, eu comecei a perceber algo do que se passava ao meu lado. Do que era que o Tito tremia? O que alimentava seu incessante soluço? A quem, incansavelmente, implorava por piedade?
Era ao Fleury. Fleury, sim, eu garanto, Fleury estava aí, entre nós dois. Tito ouvia suas vociferações e por ele aguardava. Enquanto não se entregasse, Fleury continuaria torturando cada um dos seus irmãos de sangue e bradando insultos contra ele, Tito: “Comunista, homossexual, traidor, terrorista,a Igreja já te jogou fora! Você nunca mais pisará neste chão sagrado, não mais entrarás neste convento, nem comerás à mesa daqueles religiosos ‘dominicanos’: eles não te querem mais. Não há mais como tu escapar de mim! Entregue-se a mim, já!”.
Naquele momento, as razões da razão não tinham onde se prender. Pensei assim: então vamos conversar com Fleury. Logo mais, informei ao Tito o que o Fleury acabava de nos conceder: que sentássemos dentro de um dos carros aí estacionados, abrigando-nos da chuva, que tomássemos um cafezinho e algum agasalho. Os comprimidos de Valium que, furtivamente, joguei no café, não foram de nenhuma ajuda. A madrugada foi aquele entra e sai, do carro para o chão, do chão para o carro, desesperadamente. Assim ficamos até a manhã, quando finalmente procuramos assistência no hospital psiquiátrico de Lyon.
Desse dia em diante, Tito pendularia entre o entregar-se e o resistir, como que acuado entre as paredes desse novo “corredor polonês”: morrer vivendo, viver morrendo. Cumpria-se a louca promessa que recebera durante as sessões reais de tortura.
Desse dia em diante, Tito penetrou na minha vida. Nunca mais saiu.
Divulgar o grito de Tito
Juntos, viajamos, cantamos, choramos, rezamos, xingamos, desafiamos. Partilhamos do melhor e do pior. O chão que vem e o chão que se vá. Até que um dia de agosto de 1974, na semana de São Domingos, Tito resolvesse livrar-se definitivamente do torturador e da loucura que este pretendia infundir-lhe. Nesse instante, possivelmente imaginado de longa data, num último mistério de resistência e de fé, Tito derrubou-lhe a pretensão de poder continuar, dia após dia, roubando a sua vida.
Divulgar o grito do Tito. Testemunhar, resgatar sua voz abafada, tal foi – passado o tempo da intensa dor – minha primeira preocupação. De improviso, passei a organizar, em forma de singelo mimeógrafo, o essencial do conteúdo – agora traduzido para o português – do livro lançado neste dia 9 de agosto. Mais tarde, com a colaboração de Charles Antoine, sacerdote e jornalista francês que em São Paulo cobrira o processo dos frades dominicanos, este material foi publicado em Paris como livro, com o mesmo título: “As próprias pedras gritarão”, ecoando o versículo do evangelho gravado no túmulo do Tito, mais tarde trasladado de La Tourette para Fortaleza.
Vasculhando seus poucos pertences nos dias que seguiram a sua partida, eu topei com várias escritas do seu punho. Eu percorri a bíblia que ele costumava ler, me atentei aos vários trechos que ele havia destacado. Eu descobri poesias de cuja existência nem suspeitava e li artigos e entrevistas que retratavam sua luta. O conjunto produziu em mim o efeito de uma iluminação: esse mesmo Tito com quem mal eu convivera 18 meses aí estava por inteiro.
Nenhum herói, nenhum santo, simplesmente Tito, por ele mesmo: homem de convicção, irmão de fé e de dúvidas, militante determinado, amigo sensível. Era elementar fidelidade tornar pública a palavra desse pregador assassinado.
Ao pisar no Brasil pela primeira vez em março de 1983, trazendo de volta seu corpo ao país, eu resolvi ficar nesta terra e aqui estou, há 25 anos, partilhando as esperanças, as lutas e a fé que, bem provavelmente, se aí estivesse, seriam as do Tito, junto ao seu povo.
Já correram 40 anos desta história. Quarenta anos que o Tito permanece convivendo comigo e vice-versa.
Dele ou a exemplo dele faço questão de manter acesa a chama da utopia de outro mundo possível neste mundo daqui sem, para isso, ter de esperar o outro mundo. Nestes tempos em que os cientistas substituíram os religiosos na formulação de previsões apocalípticas – aquecimento global, conflitos generalizados, distanciamento exponencial entre os extremos da riqueza e do poder, crescimento das intolerâncias e dos fundamentalismos – haveria coisa mais irreal do que esse sonho acordado? Depois de 30 anos da transição democrática e 20 de governo popular no Brasil, é realista continuar acreditando nisso se nem saiu a reforma agrária? Se nem foi confirmado o reconhecimento dos direitos dos povos originários deste continente? Se jovens morrem diariamente sob as balas do tráfico ou das polícias?
“É melhor morrer do que perder a vida”
Na sucessão de sombras e de luzes que forma a trama da nossa história, dele ou a exemplo dele, guardo aberta a ferida da indignação e o ululante grito de socorro dos vitimados da concentração da terra, da expulsão do campo, da ganância desenfreada do capital, da matança da vida no planeta.
Se o grão de trigo não morre na terra, não vem colheita. Ou, na versão reescrita por Tito pouco antes de sua oblação definitiva: “É melhor morrer do que perder a vida”. O que entendo assim: “Minha vida, ninguém tira, ela é minha. Eu a estou entregando”. Penso em muitos outros profetas assassinados: Cristo, Zumbi, King, Romero, Dorothy, Pataxó, José Cláudio, Maria do Espírito Santo…
No canto dos romeiros e das romeiras que brota das CEBs e das ruas, dos acampamentos e das fábricas, encontro a certeza que me anima como a Tito sustentou: “Prova de amor maior não há que doar a vida pelo irmão!”. Permaneça em cada um de nós o evangélico recado: “Se os discípulos se calarem, as próprias pedras gritarão!” (Lc 19, 40).
Xavier Plassat, agostode 2014
Serviço:
As próprias pedras gritarão – escritos, ideias e poemas de frei Tito
Autor: Xavier Plassat (org.)
Equipe editorial: Carolina Motoki, Rafael Oliveira e Xavier Plassat
Desenhos: Silvio Diogo
Valor: R$ 15*
* O livro pode ser adquirido na sede da CPT em Araguaína, Tocantins (rua Porto Alegre, 446, bairro São João) ou pelo email [email protected]. Nesse caso, é cobrado adicionalmente o valor do frete (R$ 2,55 para envio simples, R$ 5,55 para envio registrado).
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