"Por que existem escravos na oitava economia do mundo?" A pergunta do juiz do Trabalho Hugo Cavalcanti Melo Filho é pertinente. "O escravo é resultado da má distribuição de renda, de terra e da ineficácia dos poderes constituídos", diz Loris Rocha Pereira Junior, procurador do Ministério Público do Trabalho.
Nas regiões em que o Estado se abstém do controle das relações de trabalho, a mão-de-obra é mais vulnerável às condições degradantes. A fiscalização é ínfima, a Justiça é lenta e, principalmente, distante. Grande parte da mão-de-obra forçada não tem nem mesmo certidão de nascimento. "Em alguns lugares do Brasil ainda não se instalou um Estado civil, ainda vivemos numa perspectiva hobbesiana, em um estado de natureza", afirma o juiz de trabalho de Pernambuco Hugo Cavalcanti Melo Filho. Esse fato é evidente principalmente em locais onde o coronelismo permanece como uma das relações mais importantes de controle social.
O combate ao Trabalho escravo no Brasil tem como protagonista o Grupo Móvel de Fiscalização, vinculado ao Ministério do Trabalho. Depois de recebida a denúncia, uma equipe vai ao local verificar a existência de mão-de-obra forçada.
Criado em 1995, o grupo já libertou cerca de seis mil pessoas, segundo o frei Xavier Plassat, coordenador da campanha contra o trabalho escravo da CPT (Comissão Pastoral da Terra). Esse órgão, ligado à Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, é historicamente atuante na luta contra o trabalho escravo. Ainda de acordo com os dados da CPT, dos resgatados, 60% são nordestinos. Grande parte dessas pessoas nem mesmo existe para o Estado brasileiro, pois não possuem qualquer tipo de documento. Esse é um dos problemas que o Grupo Móvel procura sanar, providenciando identidades e carteiras de trabalho.
Um juiz e um membro do Ministério Público do Trabalho acompanham há cerca de dois anos o Grupo Móvel. Dessa forma, a denúncia e a condenação trabalhista podem sair no mesmo dia da inspeção. Loris Rocha Pereira Junior cita o caso da fazenda Estrela de Alagoas de Sapucaia, sul do Pará, cujo proprietário, Antônio Lima Araújo, teve 110 mil reais de sua conta bancária bloqueados no mesmo dia da fiscalização. Com isso, os 95 trabalhadores explorados receberam imediatamente seus direitos trabalhistas.
As atividades do Grupo Móvel têm sido beneficiadas com a criação das Varas de Justiça Itinerantes. Ainda assim, o processo penal, responsabilidade da Justiça Federal, ainda é muito lento. Isso contribui para que muitos “patrões” permaneçam impunes e que a taxa de reincidência seja alta. Além disso, raramente um fazendeiro é preso em flagrante, pois quase está presente na fazenda.
Outro entrave ao combate da impunidade é a redação do artigo 149 do Código Penal: "reduzir alguém a condição análoga a de escravo". Dessa forma, cabe ao magistrado definir o conceito de escravidão de modo totalmente subjetivo. Em resposta a problemas como esse, muitos são os projetos de mudança legislativa e medidas provisórias em trâmite. Porém “não adianta a letra fria da lei se não houver o Estado por trás”, ressalva o juiz Hugo Cavalcanti Melo Filho.
“O Grupo Móvel pode conseguir a liberdade provisória dos cativos. Mas a liberdade definitiva só virá com a inclusão desses trabalhadores na cidadania, fixação ao campo e políticas públicas, como a eforma agrária”, lembra Valderez Maria Monte Rodrigues, do Grupo de Fiscalização Móvel.
Uma questão bastante debatida em relação à punição dos criminosos é a respeito da desapropriação de terras. Orlando Fantazzini (PT-SP), membro da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, diz que alguém que escraviza o trabalhador e tem a sua produção às custas de trabalho forçado não deve ser indenizado, mas sim receber uma sanção. Dessa maneira, defende-se que o fazendeiro tenha as suas terras expropriadas, além de ser privado de sistemas de créditos. Fantazzini é um dos especialistas que propõe a criação de selos que assegurassem a não utilização de mão-de-obra escrava ou infantil.
Além de medidas repressivas e legislativas, Patrícia Audi, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ressalva que são imprescindíveis medidas de reinserção social dos trabalhadores para que não voltem a ser cativos. Só assim uma chaga aberta há mais de meio século poderá ser fechada.
Ângela Pinho e Natália Suzuki