Um grupo formado por cinco ONGs entregou uma carta aos representantes dos governos federal e estadual questionando a reconstrução da BR-319 durante consulta pública realizada ontem em Manaus. O encontro tinha como objetivo discutir a criação de unidades de conservação na Área de Limitação Administrativa Provisória no entorno da rodovia. As ONGs Amigos da Terra, Fundação Vitória Amazônica, Instituto Socioambiental, Greenpeace e WWF-Brasil declaram na carta que a consulta deveria trazer à população as vantagens e desvantagens da reabertura da rodovia e contemplar outras alternativas, como hidrovias e ferrovias.
Segundo a carta, da forma que estão procedendo, os governos federal e estadual criam um fato consumado e restringem a consulta às possíveis ações compensatórias e mitigatórias. As entidades alertam para o perigo da expansão desordenada e suas conseqüências para o estado do Amazonas e para a capital Manaus. O documento também afirma que os governos irão induzir o desenvolvimento da atividade madeireira e com grande potencial de geração de conflitos socioambientais com o intuito de definir 2/3 das áreas de unidades de conservação a serem criadas como Florestas Nacionais.
Já foram realizadas cinco consultas públicas nos municípios de Tapauá, Canutama, Lábrea, Humaitá e Manaus. A última consulta ocorrerá em Beruri no próximo dia 28. Os eventos têm sido organizado pelo MMA, IBAMA e pelo governo do estado do Amazonas. A região de influência da BR-319 é considerada Área sobre Limitação Administrativa Provisória (Alap) e abrange cerca de 15,4 milhões de hectares, excluídas as terras indígenas já reconhecidas e unidades de conservação já criadas, e envolve 17 municípios do Amazonas.
Leia abaixo a íntegra da carta entregue:
Entrando no mérito da reconstrução da rodovia BR-319
As entidades abaixo assinadas trazem a esta consulta de Manaus sobre a BR-319, as seguintes considerações, que julgam relevantes para uma reflexão mais detida a respeito do processo de reconstrução da BR-319, proposto pelos governos federal e do Amazonas.
1. As consultas sobre a criação de unidades de conservação na ALAP- Área sob Limitação Administrativa Provisória da BR-319, que estão acontecendo no Amazonas, implicam considerar que a proposta de reconstrução dessa estrada deveria ser amplamente discutida pela sociedade, de modo a garantir, se aprovada, que todos os interesses públicos estivessem nela assegurados.
2. A primeira e principal consulta pública a ser realizada no estado deveria estar orientada para a discussão de todo o projeto de reabertura da rodovia, de maneira informada e esclarecedora, mostrando à população do Amazonas e à de Manaus, em particular, as vantagens e desvantagens dessa e de outras iniciativas, como hidrovia e ferrovia. Essa consulta, entretanto, não aconteceu.
3. Procedendo como estão, os governos federal e estadual deixam de cumprir uma etapa fundamental desse processo, assumindo, sem discussão, o modelo rodoviário das décadas de 1950 e 1960, fazendo da reconstrução da obra um fato consumado e induzindo a sociedade a declinar do direito de conhecer, discutir e decidir sobre um projeto de implicações importantes para a vida das pessoas que vivem nesta região.
4. Ao argumento de que a rodovia já existe há quase 30 anos, é preciso lembrar que ela foi aberta no início da colonização de Rondônia, Mato Grosso e sudeste do Pará, onde ainda havia muita floresta a ser "gasta" e terras a serem apropriadas, não estando esta região à mercê daquelas forças expansionistas, à época, como agora. Além disso, ficou desativada durante muitos anos nesse período.
5. O quadro hoje é outro. As forças da expansão desordenada presididas pela atividade madeireira, pecuária e – mais recentemente, mas não menos intensa – pela soja, que subordinaram os interesses locais, naquelas regiões, já chegaram ao sul do Amazonas, onde os conflitos fundiários se estabeleceram.
6. É necessário demonstrar para a sociedade amazonense as demandas sociais e econômicas que justificariam a reconstrução da estrada. A não demonstração dessas demandas compromete o controle social do processo de revitalização da rodovia e o faz objeto de injunções e vontades políticas nem sempre coerentes com os anseios da população.
7. Estudos do INPA mostram o quanto poderá mudar, para pior, as condições socioambientais em Manaus. A pressão pela ocupação desordenada de seu solo urbano, com a intensificação dos desmatamentos na cidade, já bastante impactada com a perda crescente de suas florestas; o agravamento de seus problemas de moradia, de saneamento e de saúde – além do aumento dos seus bolsões de pobreza -; são algumas das conseqüências previsíveis com a reabertura da estrada.
8. Essas pressões não ficarão em Manaus, apenas. Elas deverão se irradiar para oeste e para o norte, através de estradas como a BR-174 e da via aberta na floresta pelo Gasoduto Coari Manaus.
9. A exemplo do que o governo federal tem anunciado como novo paradigma para implementação de obras de infra-estrutura na Amazônia, o projeto de desenvolvimento para a região da BR 319 deveria contemplar ações para promoção da sustentabilidade socioambiental em todos os setores, e não apenas com a criação das unidades de conservação.
10. Quanto à proposta de ordenamento da ALAP, através da criação de Ucs, que só poderia ganhar consistência depois de ouvida a sociedade sobre a reconstrução da rodovia, é de se destacar os seguintes aspectos:
a. mais de 60% dos 8,1 milhões de hectares propostos para criação de Ucs seriam florestas nacionais, o que corresponde a 1/3 da ALAP, mas a exploração madeireira na região é de pouco significado econômico. Com essa proposta, o MMA e o governo do estado estão induzindo o desenvolvimento de uma atividade que ainda não existe na área, e com grande potencial de geração de conflitos socioambientais, num contexto de duvidosa capacidade do poder público de ordená-la.
B. dos cinco milhões de hectares restantes, boa parte está no interflúvio dos baixos cursos do Madeira e do Purus, onde, muito possivelmente, a influência da economia de escala gerada pelo Porto Graneleiro de Itacoatiara fará com que essa área venha a ser ocupada por atividades econômicas de grande impacto sobre a floresta e sobre as populações locais. No baixo Tapajós, isso está acontecendo com a soja, depois de implantado o porto da Cargill e anunciada a pavimentação da BR-163. Guardadas as proporções, não &eacut
e; de se descartar o risco de vir a ocorrer nos municípios da região o que hoje vem ocorrendo em Santarém, onde os desmatamentos e conflitos sociais alcançaram níveis até recentemente insuspeitados.
C. no âmbito da política estadual, a condução desse processo também não atende de forma satisfatória a uma das diretrizes estratégicas importantes do Programa Zona Franca Verde, que prevê o "fortalecimento de uma cultura de planejamento estratégico de obras de infra-estrutura, envolvendo a análise adequada de alternativas (em termos de custo-benefício e impactos socioeconômicos e ambientais), medidas preventivas, mitigadoras e compensatórias, e a execução "ex-ante" de ações de ordenamento territorial em bases sustentáveis, com transparência e participação da sociedade".
Manaus, 26 de julho de 2006
Amigos da Terra – Amazônia Brasileira
Fundação Vitória Amazônica
Greenpeace
Instituto Socioambiental
WWF – Brasil