ABC da liberdade

 28/07/2006

Por Joana Moscatelli 

“Mais de 25 mil pessoas em todo o Brasil não podem voltar para casa depois de um dia cheio de serviço, pois estão presos em fazendas, garimpos e carvoarias. Ficam meses trabalhando sem salário, dormindo em barracos de lona improvisados, comendo mal, pegando malária e outras doenças, sob a mira de jagunços e de suas armas”. É essa a realidade que o almanaque “Escravo, nem pensar!” quer mostrar para os jovens e adultos que estão aprendendo a ler através do projeto Brasil Alfabetizado, do Ministério da Educação (MEC).

A cartilha, resultado da parceria entre o MEC, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a ONG Repórter Brasil, pretende fornecer informações para ampliar a reflexão e a consciência sobre o trabalho escravo. Já foram distribuídos cerca de 42 mil exemplares para professores do programa Brasil Alfabetizado, da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, nas regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais.

A cartilha foi elaborada a partir da experiência do projeto de mesmo nome da ONG Repórter Brasil. “Inspirada na metodologia do educador brasileiro Paulo Freire, ela será uma ferramenta para levar a discussão sobre o tema para a sala de aula. A idéia é estimular a construção do conhecimento em conjunto, e não de maneira autoritária”, explica o coordenador do projeto e presidente da Repórter Brasil, Leonardo Sakamoto.

O almanaque conta a história de um trabalhador que foi aliciado para o trabalho escravo, mas conseguiu fugir e denunciar a exploração. Além da história, que possui uma linguagem simples e leve, a publicação traz informações importantes sobre o trabalho escravo no Brasil e propõe questões a serem discutidas dentro da sala de aula. Logo no início, o texto da cartilha destaca a responsabilidade de educadores e educadoras em passar as informações para outras pessoas. São informações sobre as precárias condições de alimentação, higiene e moradia a que são submetidos quem trabalha em condição análoga à escravidão. Trata ainda do isolamento geográfico, das ameaças físicas e psicológicas, da retenção de documentos e das dívidas inventadas.

Além de tomarmos conhecimento sobre termos utilizados no meio, como “gato” (pessoa que alicia os trabalhadores) e “pau de arara” (veículo que transporta os trabalhadores), a cartilha informa que o destino principal dos trabalhadores explorados são as fazendas na região da fronteira agrícola, em que a floresta amazônica é destruída para dar lugar a pastos e plantações. Segundo Patrícia Audi, coordenadora no Brasil do projeto de combate ao trabalho escravo da OIT, estados como Pará, Mato Grosso e Tocantins registram a maior parte dos casos de ocorrência de trabalho escravo. Já Piauí, Maranhão e Bahia são os lugares onde a falta de trabalho e os baixos índices de desenvolvimento humano (IDH) permitem a existência de um grande número de trabalhadores suscetíveis a serem aliciados para o trabalho escravo.

Para Sakamoto, a miséria contribui para a formação de um vasto contingente de mão de obra à disposição do trabalho escravo. Segundo ele, os índices de trabalho escravo são maiores em regiões muito pobres, onde existe carência de educação, emprego, cidadania e condições de vida decente.

O diretor do Departamento de Educação de Jovens e Adultos do MEC, Timothy Denis Ireland, destaca que a maioria dos trabalhadores explorados possuem baixo ou nenhum nível de escolaridade. Para ele, além de trabalho e condições mínimas de vida, falta informação a essas pessoas. E por isso é importante tentar levar a discussão sobre trabalho escravo para as aulas.

Para Audi, o perfil dos trabalhadores escravos não deixa dúvida: “São homens entre 21 e 40 anos, a maioria analfabetos ou com muito pouca escolaridade. Conhecer seus direitos é fundamental para que os trabalhadores não sejam atraídos por falsas promessas de emprego e a educação, nesse caso, desempenha um papel fundamental para evitar a ação dos gatos”.

Segundo ela, ações de prevenção ao trabalho escravo são tão ou mais importantes do que a repressão para evitar o aliciamento de mão-de-obra. Prevenir é fundamental, e é isso que a cartilha faz, basicamente. Mas, caso seja necessário punir alguém, a publicação também oferece uma série de meios e contatos de entidades que ajudam a repassar denúncias sobre casos de trabalho escravo. A publicação destaca o trabalho da Comissão Pastoral da Terra (CPT), ligada à Igreja Católica, que tem escritórios espalhados por todo o país e que entre 1995 e 2005 registrou 32 mil denúncias, em 19 estados.

Nesse mesmo período, cerca de 17 mil pessoas foram libertadas do trabalho escravo por grupos móveis de fiscalização formados por fiscais do Ministério do Trabalho, Polícia Federal e Ministério Público do Trabalho. Segundo Ireland, a próxima ação do MEC é tentar identificar esses trabalhadores e mobilizá-los para participar do programa Brasil Alfabetizado: “O Ministério do Trabalho tem o cadastro dos trabalhadores que foram resgatados da escravidão já que eles possuem o direito a um seguro-desemprego e, a partir desse cadastro, o MEC irá mobilizar os trabalhadores em 15 municípios dos estados de Maranhão, Pará, Piauí e Tocantins. A maioria desses trabalhadores não teve acesso à educação, e o que o MEC quer é tentar consertar essa omissão”.

Além da cartilha, a parceria entre o MEC e a OIT pretende incentivar a realização de estudos e pesquisas sobre o papel da educação no combate ao trabalho escravo. E busca também divulgar e disseminar informações sobre o tema para os Fóruns Estaduais de Educação de Jovens e Adultos bem como para as Secretarias Municipais e Estaduais de Educação de Pará, Mato Grosso, Piauí, Bahia, Maranhão e Tocantins.

“Quanto mais conhecimento houver sobre o tema, quanto mais soubermos como se dá o aliciamento, mais condições todos os que estão envolvidos na luta contra o trabalho escravo terão para combater essa chaga”, diz Audi, que considera inadmissível que em pleno século XXI trabalhadores ainda estejam sendo submetidos a trabalho escravo.

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