“Chega de cinismo”

 07/08/2006

Aline Sêne
Da equipe do Correio

Membro da Coordenação da Campanha Nacional contra o Trabalho Escravo, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Frei Jean-Marie Xavier Plassat é um dos maiores especialistas no assunto do Brasil. Já viajou por diversas partes do país, acompanhando ações contra uma prática ainda presente em vários Estados: o trabalho escravo.

Francês, 56 anos, graduado em Economia e Administração pela Universidade de Paris, e com formação também em Teologia e Filosofia, Frei Xavier deixou a ‘cidade luz' há 19 anos e veio para uma das regiões mais pobres do mundo: a Amazônia Oriental, onde trabalha em conjunto com os movimentos populares.

Em entrevista, o religioso diz que a reforma agrária é essencial na erradicação do trabalho escravo, além de políticas públicas de geração de emprego digno e uma política efetiva de fortalecimento das agriculturas camponesa e familiar. Para o Tocantins, Plassat considera que ações como a fiscalização, a ampliação da prevenção e a consolidação da organização dos próprios trabalhadores devem ser intensificadas.

Correio – Como está a situação do trabalho escravo no Brasil?
Frei Xavier Plassat – A escravidão por dívida permanece flagelando os grupos mais vulneráveis da população rural brasileira. O perfil das vítimas são trabalhadores rurais sem-terra, na faixa etária de 17 a 50 anos, freqüentemente indocumentados, analfabetos. Pela estrita necessidade de sustentar suas famílias, são coagidos a buscar uma saída ilusória na migração temporária e no aliciamento para qualquer empreitada. Já o perfil dos escravistas modernos é de pecuaristas e fazendeiros do propalado agronegócio que usam e abusam de uma pseudo-terceirização (por meio dos chamados "gatos") para impor superexploração e até cativeiro, nas condições mais degradantes que se possa imaginar em pleno século XXI. Em 11 anos, foram libertados mais de 20 mil escravos, explorados no desmatamento da Amazônia, no roço de pasto, na produção de carvão vegetal para a siderurgia, ou nas lavouras do que se diz moderno agronegócio. Cerca de 250 casos são noticiados por ano, envolvendo 8 mil trabalhadores, de um total anual estimado em até 40.000. E, dos mais de 600 proprietários rurais já flagrados desde 1995, nenhum está na cadeia, nenhum teve a propriedade confiscada e muitos reincidiram.

O Tocantins deixou o 3º lugar para ser o 2º em trabalho escravo. Como avalia essa realidade?
Não é bem assim. Há maneiras e maneiras de definir isso, conforme o critério escolhido. São vários: existe o número de denúncias de trabalho escravo identificadas, o número das que são fiscalizadas, a quantidade de trabalhadores que constam nas denúncias e a dos que chegam a ser libertados. Há uma amostra disso tudo na ‘lista suja'. O Tocantins começa a aparecer nas estatísticas nacionais de trabalho escravo somente em 2003. Até então, temos somente alguns casos esporádicos, deixando de lado os vários casos flagrados no Pará, em terras de fazendeiros ou grileiros tocantinenses (em Pacajá ou São Félix do Xingu). De lá para cá, o número de casos anualmente denunciados oscila entre 32 e 43. Em 2006, já são 28 casos. O Estado, nesta base, ocupava o 3° lugar nacional em 2003 (atrás do PA e MA), e no 2° desde então (atrás do PA). Pelo número das libertações (320 a 541 por ano neste período), o TO está no 4° lugar em 2003 (atrás de PA, BA e MT) e 2005 (atrás de MT, PA e MA), e no 2° em 2004 e 2006, sempre seguindo o PA, e seguido por MT, MA ou BA.

Qual o objetivo desse ranking ?
Basta registrar que, apesar do seu reduzido tamanho, o Tocantins compete há anos com o Mato Grosso para ocupar o 2° lugar no ranking dos piores. Por sinal, uma competição dentro de uma mesma realidade: a realidade do agronegócio, na pecuária ou na lavoura (soja, algodão) e da devastação ambiental (desmatamento, venenos, carvoarias). Não há de se estranhar o destaque do Tocantins nesta competição: o slogan do ‘laissez-faire, laissez-passer' (o Estado da livre iniciativa), que presidiu a criação do Estado, nunca foi realmente revertido pelo acréscimo tardio do tímido complemento e da justiça social. Hoje, o slogan virou ‘o Estado do Agronegócio'. Este é o único Estado da ‘banda dos 4' onde nenhum político nunca levantou a voz para denunciar a vergonha da escravidão moderna ou propor alguma ação de combate. Pelo contrário: o que se ouve por aqui é o mais deslavado discurso negacionista. Trabalho escravo no Tocantins? Mentira, isso não existe! E aqui ainda temos o senador João Ribeiro: só vê mentira onde policiais federais e fiscais acharam escravos – sua propriedade!

Qual é o fator principal da existência, ainda, do trabalho escravo?
Costumamos dizer que são três os alicerces que mantêm vivo o sistema da escravidão moderna: a miséria, a ganância e a impunidade. Miséria de milhares de famílias sem acesso à terra para trabalhar e produzir seu sustento, sem acesso à educação mínima ou à saúde. Dos peões escravizados, 90% são analfabetos e indocumentados; quase todos são sem-terra. A maioria são migrantes arrancados da sua terra natal, do Nordeste (MA, PI e CE) e muitos são trabalhadores rurais condenados à miséria nas periferias de nossas cidades, depois de terem sido expulsos do campo nas últimas décadas. Ganância de um punhado de criadores que concentram terras, especuladores de terra enriquecidos pela grilagem e a devastação da floresta; plantadores de soja ou de cana em terras que já foram de posseiros antigos, desalojados pelo lucro ou a violência brutal. Basta constatar que, de 600 proprietários flagrados com escravos nos últimos 11 anos, nenhum foi para a cadeia, nenhum teve suas terras confiscadas, e muitos reincidiram sem o menor pesar.

Na sua opinião e da CPT, quais as ações necessárias para erradicar o trabalho escravo da Região Norte?
Reforma agrária, reforma agrária e reforma agrária! Políticas públicas de geração de emprego digno, política efetiva de fortalecimento das agriculturas camponesa e familiar. Revisão da opção dominante voltada para um modelo de desenvolvimento agro-exportador, excluidor das pessoas, predador do ambiente e concentrador das terras e das riquezas. Além, também, especificamente para o Tocantins, temos que ter uma intensificação da fiscalização, punição exemplar, ampliação da prevenção, consolidação da organização dos próprios trabalhadores.

Quais as punições que
o fazendeiro deve receber por manter trabalhador escravo em suas terras?

Primeiro, seria necessário que as penas já previstas em lei sejam aplicadas: julgar o crime de trabalho escravo (o que implica definir quem julga: Justiça comum ou federal, sair da indefinição atual). Segundo, seria essencial incrementar as penalidades que mexem com o lucro inaceitável auferido pelos praticantes desse crime: mão no bolso dos escravistas deve ser a regra! Eles devem ter as torneiras de financiamento fechadas e cortada qualquer possibilidade de comercializar. Uma punição exemplar e significativa é o confisco da terra, proposto há mais de 10 anos por meio da Proposta de Emenda Constitucional que se arrasta no Congresso, vítima constante de espúrias barganhas ruralo-governistas. É uma medida radical, simbólica, legítima: se a terra é instrumento do crime, que seja retirada do criminoso e destinada a promover o que é sua destinação fundamental (por dádiva divina inclusive): a vida. Que nela seja feita a reforma agrária, acabando com a miséria, a ganância e a impunidade de uma rajada só.

As políticas de combate ao trabalho escravo do Governo federal, na sua opinião, foram satisfatórias?
A adoção do Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (2003) resultou em avanços importantes: na fiscalização (72% dos escravos libertados desde 1995 foram resgatados entre 2003 e 2006) e na punição (indenizações por danos morais coletivos na Justiça do Trabalho; inclusão, na ‘lista suja', de uns 200 proprietários escravocratas, com perda do direito a financiamentos, bem como na divulgação dessa realidade na sociedade. No entanto, tais esforços – iniciados em 1995 e ampliados em 2003 – não alcançaram os resultados prometidos. O primeiro motivo é que várias das medidas prometidas não foram implementadas: a aprovação do projeto de emenda à Constituição, que prevê, em benefício da reforma agrária, o confisco das terras de escravistas, está parada até hoje no Congresso, por determinação da bancada ruralista e anuência de fato do Governo. E mais: a paralisia da reforma agrária e a crescente submissão do Governo às exigências do agronegócio tornaram-se os obstáculos principais à geração de empregos decentes no campo, impedindo a emergência de uma agricultura camponesa forte, empenhada na segurança alimentar do país, no respeito aos recursos naturais, na inclusão social e na dignidade do trabalho.

Como está o andamento da assinatura da Carta-Compromisso no Estado? Os políticos estão aderindo?
Por enquanto, essa iniciativa da Repórter Brasil, uma ONG membro da Conatrae e parceira da CPT, já recebeu no Tocantins a adesão massiva de candidatos progressistas do PT, PC do B e PSOL.

Em nível de propostas, como está avaliando o processo eleitoral?
Até o momento, não percebi realmente qual dos dois grupos em competição no Estado estaria apresentando propostas: o mesmo modelo de desenvolvimento excluidor e predador é o que eles defendem, num continuísmo desanimador que só reanimou sua briga de fachada. Fazer a diferença nesse contexto só virá de um projeto realmente popular, ancorado nas lutas das organizações e movimentos sociais do campo e da cidade.

A CPT está organizando o Seminário Estadual de
Combate ao Trabalho Escravo. Como será o evento?

Este é o 2° seminário estadual. O primeiro foi em 1997, quando lançamos a campanha ‘De olho aberto para não virar escravo!'. Pretendemos fazer um balanço do trabalho realizado, dos desafios que ficam, das propostas que precisam avançar. Os participantes são militantes da causa da erradicação do trabalho escravo moderno, reivindicadores da reforma agrária e dos direitos humanos pertencentes aos vários movimentos sociais do Tocantins que abraçaram essa causa: movimento sindical dos trabalhadores rurais, movimento dos sem-terra, direitos humanos, pastoral da juventude rural, atingidos por barragens, luta pela moradia, professores, etc.

No Tocantins tivemos um fazendeiro, conhecido como ‘Branquinho',
que aterrorizou a Região Norte e perseguiu membros da CPT, mas
ainda encontra-se foragido. Como considera essa situação?

Este caso surgiu em 2002. Uma blitz conduzida pelo Ministério Público Federal e pela Polícia Federal revelou a existência, em Ananás, de um sistema de aliciamento envolvendo fazendeiros, pistoleiros e gatos. Peões enganados pagaram com a vida seu sonho de ganhar um bom dinheiro, seguindo gatos para empreitadas de desmatamento em áreas griladas da Terra do Meio. Prisões foram decretadas, duas delas visando fazendeiros da região. Um deles – de apelido Branquinho, com farta ficha criminal e atuação destacada na máfia do boi – conseguiu se furtar à prisão, acabou se entregando depois de ter espalhado várias ameaças contra trabalhadores, agentes de direitos humanos e procurador da República. Em decorrência de suas ameaças de morte, um procurador foi afastado do Tocantins, muita gente permanece até hoje preocupada com sua segurança cotidiana, e novas ameaças chegaram a ser proferidas na mesma região contra ativistas de direitos humanos. Esse é um retrato da impunidade ainda vigente no Brasil e no Tocantins. E temos que pôr fim a esse escândalo. Já!

Nessa última atualização da ‘lista suja', foram
acrescentados alguns nomes de políticos, como
o caso do senador João Ribeiro. Como avaliou?
Pura casualidade: 35 escravos foram libertados de sua fazenda há uns dois anos atrás. Esgotaram-se as vias de recurso contra o Ministério do Trabalho, veio a sua vez de entrar na ‘lista da vergonha' pelo que, segundo as constatações dos fiscais, fez. É o caso clássico de um proprietário negligente ou cínico, no mínimo ganancioso, que empreitou serviços de sua fazenda e fechou os olhos às condições impostas aos trabalhadores. Foi fiscalizado. O infrator procurou todos os meios de se safar de qualquer condenação prejudicial a suas ambições políticas. Aguarda ainda decisão do STF, a respeito da denúncia-crime apresentada pelo procurador-geral da República, e aguarda nova decisão da instância superior da Justiça do Trabalho (TST).

E sobre a resposta do senador diante da inclusão do seu
nome na ‘lista suja': "É um absurdo e vou recorrer pois,
quando foi julgado o caso da minha fazenda, não foi considerado
trabalho escravo". Como analisa a fala do parlamentar?

Os gregos chamavam isso de ‘silogismo'. Um deles ficou famoso: ‘tudo o que for raro é caro. Um burro barato é raro. Portanto, um burro barato é caro'. Transpondo, tudo o que não for pior, é melhor, e degradante seria menos pior que ‘escravo'. Essa é a frágil linha de defesa do senador num processo ainda n&
atilde;o concluído (há recurso no TST contra a decisão do TRT-PA, e ainda há a parte penal sob decisão do STF). Só tem um ‘pepino': a lei 10.903, aprovada pelo Congresso em dezembro de 2003, caracteriza o trabalho escravo, entre outras figuras, como a "sujeição a condições degradantes de trabalho" (art.149 CP). A degradação é o que tira de um homem a dignidade inerente à sua condição. Se é menos pior? Fica para o leitor a apreciação…

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