Escravos do século XXI

 14/09/2006

Cidades 

Brasil tem trabalhadores privados de liberdade e vivendo sem condições sanitárias

Já faz mais de um século desde que a Princesa Isabel assinou a lei áurea pondo fim a escravidão no Brasil; entretanto, o que parecia ser um conto de fadas nunca teve um final feliz. Até hoje, em pleno século XXI, o Brasil continua a sofrer a vergonha internacional do desrespeito à dignidade humana com a continuação do trabalho escravo.

Segundo cálculos da Comissão Pastoral da Terra, no Brasil, 25.000 pessoas, a maioria homens semi-analfabetos, entre 25 e 40 anos de idade, trabalham em condições subumanas, sem acesso a água potável, alojamento, salário e com o cerceamento de outro direito básico: o da liberdade. "Em condições inferiores às dos animais em cativeiro e proibidos de regressarem para a cidade de onde partiram, esses trabalhadores se submetem a jornadas excessivas de trabalho, com os direitos legais desrespeitados e pondo em risco sua segurança e saúde física e mental", afirma Marinalva Cardoso, auditora fiscal da Delegacia Regional do Trabalho no Rio Grande do Norte.

A falta de emprego e os insuficientes investimentos no combate à seca fazem do Nordeste o celeiro ideal para a atuação dos "gatos", nome dado aos aliciadores que percorrem as cidades do interior com falsas promessas de emprego. Em troca de porcentagens pagas por cada nova mão-de-obra, os "gatos" lucram enganando dezenas de pais de família que saem em busca de dias melhores e acabam virando escravos pelo Brasil afora. "É muito triste, mas os dados oficiais revelam que o Nordeste disponibiliza 90% da mão-de-obra escrava do país. Homens que saem do interior de Estados como Maranhão, Piauí, Rio Grande do Norte e Paraíba e vão trabalhar na agricultura e na pecuária principalmente na região Norte, privados da liberdade e em condições sanitárias tão precárias que acabam causando doenças e até a morte," garante Eders Sivers, procurador chefe do trabalho no Rio Grande do Norte.

São várias as tentativas no sentido de erradicar o trabalho escravo no país, mas ainda assim o crime permanece desafiando pontos elementares da lei. Uma das armas mais importantes nessa luta foi criada há 3 anos: o Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, lançado em 11 de março de 2003, que contém 76 ações, a serem cumpridas pelos órgãos do Executivo, Legislativo, Judiciário, Ministério Público, entidades da sociedade civil e organismos internacionais. A idéia é unir as forças dos quatro poderes e da sociedade civil organizada no sentido de adotar providências mais ríspidas contra àqueles que insistem em perpetuar as formas degradantes do trabalho escravo. Entre as ações estão o fortalecimento e treinamento especial para a polícia do Grupo Especial de Fiscalização Móvel e uma maior penalidade legal para os infratores.

Com essas medidas, alguns avanços já foram registrados, segundo dados do Ministério do Trabalho e Emprego. De 1995 a julho de 2006, 19.924 trabalhadores foram libertados no Brasil. Nesse período, em todo o país, foram realizadas 451 operações, com 1.567 fazendas fiscalizadas e mais de R$ 25 milhões pagos em indenizações. "Recentemente, numa ação conjunta aqui no Rio Grande do Norte, abortamos a ação de aliciadores que estavam levando trabalhadores da região Seridó para fazendas do Goiás. Na tentativa de burlar a fiscalização, em vez de caminhões, os criminosos usam agora ônibus de turismo, mas a ação continua a mesma: ao chegarem ao destino, os salários atraentes prometidos se tornam uma farsa. Em geral, os trabalhadores não recebem remuneração em dinheiro e quanto mais o tempo passa mais a "dívida" deles aumenta. Os documentos pessoais também ficam em poder do "chefe", que mantém um clima de repressão a ponto de se tornar impossível o retorno para casa", ressaltou o Superintendente da Polícia Federal no Rio Grande do Norte, Euclides Rodrigues.

Outra importante medida no combate ao trabalho escravo foi a portaria nº 540 do Ministério do Trabalho, que instituiu o Cadastro de Empregadores de mão-de-obra escrava, a chamada "Lista Suja". A inclusão do nome do infrator nesse cadastro ocorre após a conclusão dos autos de infração lavrados pelos auditores fiscais do trabalho e, além das questões legais, há várias medidas punitivas, como o cancelamento de crédito e o impedimento de financiamento pelos bancos oficiais para os infratores. "A maioria dos trabalhadores daqui vão ser mão-de-obra escrava em outros estados, mas o Rio Grande do Norte já tem uma empresa do Distrito Irrigado do Rio Açu, em Alto do Rodrigues, na lista suja. A exclusão da lista só acontece depois de dois anos do flagrante. Se, durante esse período, não houver reincidência e forem pagas todas as multas impostas pela fiscalização e quitados todos os débitos trabalhistas e previdenciários, o nome da empresa será retirado. O intrigante de tudo isso é que, mesmo sendo punidas, muitas empresas são reincidentes," afirma Calisto Torres, auditor fiscal do trabalho no Rio Grande do Norte.

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